A inesperada viagem de um cabo-verdiano até à câmara da Amadora

Mário Carvalho diz-se o “primeiro negro que um partido convidou” para candidato às autárquicas na Amadora. Um concelho com forte presença da comunidade lusófona de quem Mário não se diz porta-voz. Quer, antes, dar passos "para conquistar direitos de quem não se sente representado no poder".

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Rui Gaudêncio

Não lhe falem em resultados eleitorais nem expectativas de lugares a ocupar. Não tem. Até há dois meses, nunca vira como possível ser, hoje, candidato à Câmara Municipal da Amadora. "São sessenta dias sem dormir desde então", conta Mário Carvalho, o “primeiro negro que um partido convidou para ser cabeça de lista” às autárquicas no concelho, assegura.

Mário nasceu na ilha de Santiago, em Cabo Verde. Tem dupla nacionalidade, desde que a Amadora o acolheu, como diz. Chegou em 1991 para estudar. Tirou o curso em Ciência Política e Relações Internacionais pela Universidade Lusófona de Lisboa e voltou a inscrever-se para frequentar o de Direito. Terminou-o mas não chegou a entrar para a Ordem dos Advogados. "Não deu tempo para tudo", diz, entre o associativismo e o trabalho como jurista.

Começou na faculdade a sua ligação ao associativismo, desde a vice-presidência da Associação de Estudantes da Lusófona à fundação da Associação de Jovens Investigadores Cabo-Verdianos. É, há sete anos, presidente da Associação Cabo-verdiana de Lisboa e entretanto ajudou a fundar e a dirigir a cooperativa lusófona MovinGDiáspora. Prepara-se para suspender ambos os mandatos, “por questões éticas”.

Nunca quisera dar o passo para a política. Ainda que os amigos o instassem. Quando ajudou a criar, em Setembro, o MAPA - Movimento Amadora para Acreditar diziam-lhe que era este ano que devia concorrer, "que a comunidade [cabo-verdiana] não podia estar mais quatro anos" para estar nas listas.

Depois veio o convite do Nós, Cidadãos, partido político reconhecido pelo Tribunal Constitucional desde 2015. Hoje, que é oficialmente candidato, não se sente representante de uma comunidade. "Estou a fazer isto pela Amadora", diz.

Barack Obama é a sua referência política. Ainda que os amigos brinquem e o comparem ao antigo presidente norte-americano, Mário sabe "que isto não é o Estados Unidos". "E eu sou um cidadão vulgar que quer dar o primeiro passo para conquistar direitos das comunidades que não se sentem representadas no poder". 

Recorda “um caminho longo” percorrido antes de si. "Para poder chegar onde cheguei, há toda a força do movimento associativo e a chegada de pessoas, como a deputada Celeste Correia (PS), à Assembleia [da República]”. Antes de si, Francisco Pereira, cabo-verdiano, concorreu como independente como o Movimento de Intervenção e Cidadania pela Amadora (MICA), em 2008.

"Não existem sociedades racistas"

A primeira coisa que repara, à porta da sede de campanha, no centro da Amadora, é na responsabilidade que lhe caiu sobre os ombros. Ainda que não se sinta representante de uma comunidade em específico, não tem como se afastar das origens nem das ideias pelo qual foi dirigente associativo. Colocar o debate sobre o racismo na agenda política é a prioridade. Pelo caminho, propõe a promover a participação nas eleições: "Se quer, a comunidade tem que acordar". 

“É preciso admitir que o racismo existe. Não era justo dizer que não demos passos significativos, mas falta discutir sem tabu. Não há ainda sensibilidade para isto nos centros de decisão”. O candidato apoia a criminalização do racismo, “com mecanismos concretos de denúncia, mas também de punição com prisão efectiva”, e a aposta “reforçada” em campanhas de sensibilização.

Acredita que não há sociedades racistas, mas práticas racistas. “São essas práticas que se devem combater, uma a uma”. Como? Através de uma “educação abrangente" que desconstrua preconceitos.

Tem como prioridade questionar modelos de gestão dos bairros sociais e de participação dos cidadãos: “Em alternativa aos bairros sociais, uma espécie de guetos, porque não integramos as pessoas nas grandes malhas urbanas? De que forma a participação dos cidadãos se relaciona com a forma como se sentem representados?”.

Quer gerir “de forma participativa” os bairros que já existem, colocando os moradores a cuidar do espaço comunitário, criando espaços verdes, zonas de lazer e serviços. “As pessoas devem sentir-se integradas e que não têm menos que o resto da cidade”. E aí “se começa a resolver problemas de segurança”- um dos temas incontornáveis das campanhas na Amadora.

Para além da “luta pelo acesso à habitação digna”, vê como essencial o apoio à terceira idade, a ligação do concelho por uma rede de transportes públicos e a reabertura do balcão do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, num concelho em que 10% da população é estrangeira.

Os cabo-verdianos são a maioria dos estrangeiros de origem africana do concelho, eram mais de sete mil em 2011. Números que podem dizer muito pouco sobre a comunidade: a Amadora é historicamente terra de imigrantes, por isso segundas e terceiras gerações nascem portuguesas e as suas origens não entram para as estatísticas.

Na campanha, Mário vai ter uma comissão de diáspora, que se propõe “a ouvir os amadorenses que saíram do concelho”. “A Amadora não tem recursos naturais, não tem mar, mas tem pessoas extremamente empreendedoras, com a mais valia de termos 55 nacionalidades. Interessa-me ouvir estas pessoas e saber quais as suas ideias para o concelho”, diz.

O seu plano de futuro é concentrar na Amadora as grandes conferências da lusofonia, assumindo o papel de cidade centro da diáspora que fala português. “É só potenciar, não é folclore. Não precisamos de importar a multiculturalidade, porque já a temos cá”. 

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