Pedrógão Grande: "revoltados", familiares de vítimas criam associação
Governo reitera que há 64 vítimas mortais e primeiro-ministro considera caso “esclarecido”. Famílias das vítimas constituem-se assistentes no processo judicial em curso e ponderam avançar com acção contra o Estado.
Depois da dor inicial, agora é tempo de “revolta”. Familiares de vítimas do incêndio de Pedrógão Grande estão a dar os passos necessários para a constituição de uma associação, um movimento cívico que permitirá que acompanhem a par e passo as investigações em curso, que possam contribuir para o apuramento de responsabilidades e, de alguma forma, evitar que tragédias semelhantes aconteçam.
Uma das grandes dificuldades dos promotores da associação foi chegar à lista oficial das vítimas mortais. A lista não foi divulgada pelas autoridades, que se recusam fazê-lo alegando que o caso está “em segredo de justiça”, no âmbito do processo-crime que investiga as circunstâncias das operações de combate ao fogo e de resgate às vítimas. “Andamos a cruzar informações. Tivemos que ir às paróquias, passar a palavra de boca em boca”, conta Nádia Piazza, que perdeu o filho de cinco anos na tragédia e é uma das promotoras da futura Associação de Familiares de Vítimas do Incêndio de Pedrógão Grande, que já tem um grupo no Facebook.
Este sábado, porém, o Expresso publicou a lista das 64 vítimas e acrescentou mais um nome ao rol, o de uma viúva de 71 anos que vivia sozinha e foi atropelada a 17 de Junho perto de sua casa, quando tentava fugir das chamas.
Ao final da tarde, o primeiro-ministro, António Costa, disse acreditar que “já está tudo esclarecido” pela "Autoridade Nacional de Protecção Civil e pelo Ministério da Justiça”, depois de a vice-presidente do PSD, a coordenadora do Bloco de Esquerda e a líder do CDS- PP terem reclamado um esclarecimento do Governo. Tanto o Ministério da Administração Interna como a Autoridade Nacional de Protecção Civil reiteraram que são 64 as vítimas mortais, de acordo com os critérios estabelecidos.
Processo contra o Estado
“Houve um abandono completo, antes e durante” o incêndio, lamenta Nádia Piazza. Um mês depois, "após o trauma e a dor inicial, as pessoas estão muito revoltadas, mas querem transformar esta revolta em acção para honrar os que morreram”, sintetiza.
Depois de uma primeira reunião preparatória há uma semana, em que participaram cerca de “duas dezenas” de pessoas, um novo encontro "à porta fechada" está marcado para o final da tarde deste domingo. Desta vez, o número de participantes deverá ser maior: a mensagem tem estado a circular através das redes sociais e há cada vez mais pessoas a aderir, explica Nádia, que é jurista na Câmara Municipal de Figueiró dos Vinhos.
Mas é ainda necessário definir os estatutos e marcar uma assembleia-geral para a constituição da associação, o que deve acontecer "em meados de Agosto", acrescenta, pedindo a todos os familiares de vítimas mortais e de feridos que entrem em contacto com a associação. Os familiares querem ser também ouvidos pela comissão independente que está a investigar o caso até para ter a certeza que, deste processo, resultarão medidas concretas que impeçam uma repetição de uma tragédia deste tipo. “Vivemos num mar de eucaliptos, vivemos num barril de pólvora, precisamos de máscaras, de luvas", afirma.
Entretanto, três pessoas já se terão constituído como assistentes no âmbito do inquérito judicial em curso e, contactado por "pessoas ligadas aos familiares das vítimas", o advogado lisboeta Ricardo Sá Fernandes disponibilizou-se a dar o apoio jurídico necessário.
“Ninguém recusaria ajudar pessoas nesta situação”, justificou ao PÚBLICO o advogado, para quem há “indícios suficientes” para se avançar com uma acção de responsabilidade extracontratual do Estado por violação do dever de zelo, como se diz na gíria jurídica. “Houve uma descoordenação manifesta”, sustenta Ricardo Sá Fernandes, que lembra que esta acção não tem necessariamente que chegar aos tribunais. “Oxalá isso não seja necessário”, enfatiza.
Governo diz que mortos são 64
Na edição deste sábado, o Expresso incluiu na lista de vítimas mortais o caso da idosa e questionou a possibilidade de este rol ser ainda ser maior, explicando que apenas terão sido consideradas as vítimas directas da tragédia — ou seja, as pessoas que morreram devido às queimaduras ou por inalação de fumo. Foi a filha da idosa que descreveu as circunstâncias da morte da mãe: “Levava uma lanterna, o telemóvel e o dinheiro que tinha em casa e foi encontrada na estrada, com a cabeça e o braço partido."
O PÚBLICO tentou obter uma reacção do gabinete do primeiro-ministro, que começou por remeter para a assessoria de imprensa da ministra da Administração Interna — que, por sua vez, remeteu uma resposta para o Ministério da Saúde. Este garantiu ser "infundada a suspeita de um número de óbitos superior ao oficialmente divulgado".
"No Instituto de Medicina Legal foram realizadas autópsias a 64 cadáveres relacionados com o grande incêndio de Pedrógão. O delegado de Saúde do PIN [Pinhal Interior] informou que, após a noite de 17 para 18 [de Junho], não mais foi convocado para qualquer outra verificação de óbito relacionada com o incêndio", assegurou o Ministério da Saúde.
Ao final da tarde deste sábado, o Ministério da Administração Interna e a Autoridade Nacional de Protecção Civil (ANPC) reiteraram que 64 vítimas mortais é o número "validado e confirmado pelas autoridades competentes", nomeadamente pelo Instituto de Medicina Legal, com base "nos dados disponibilizados até ao momento".
"O número de vítimas mortais foi apurado com base nos critérios previamente definidos e que se prendem com cidadãos que morreram por queimaduras ou inalação de fumos decorrentes dos incêndios", precisou o Ministério da Administração Interna. "O Governo é o primeiro interessado em que tudo fique esclarecido e, por isso, aguarda as conclusões das diversas investigações em curso."