Comemorar Manuel Ferreira, valorizar África
Para Manuel Ferreira, a valorização dos crioulos e das línguas nacionais africanas podia fazer-se a par de uma apropriação da língua portuguesa.
Comemorou-se esta semana o centenário do nascimento do escritor Manuel Ferreira (1917-1992), com um sarau literário em Leiria, distrito onde ele nasceu (em Gândara dos Olivais, Marrazes, em 18 de Julho). Não é a primeira vez que o nome de Manuel Ferreira é aqui citado. A mais recente foi em 29 de Dezembro de 2016, na crónica intitulada Cabo Verde e uma justa lembrança. Mas agora que se cumprem 100 anos do seu nascimento, e que tal marco vai ser assinalado com iniciativas muito diversas (exposições, mesas-redondas, um livro biográfico, uma conferência internacional), a próxima das quais se realiza já no sábado, nas Caldas da Rainha, parece oportuno recordá-lo. Tanto mais que parte dos seus estudos incidiram sobre a língua portuguesa, os crioulos e o bilinguismo nas nações africanas pós-coloniais, tema que se reacendeu nestes nossos tempos.
Em entrevistas recentes ao PÚBLICO, dois músicos africanos sublinharam a importância dos respectivos crioulos nacionais. Tito Paris, cabo-verdiano, disse que procura nas ruas da Praia ouvir “aqueles velhotes que estão ali, alguns a fazer redes, e que falam um crioulo bem afinadinho, muito bonito. Eu gosto de afinar o meu crioulo também, de não o deixar desafinar.” E Binhan, guineense, afirmou por sua vez: “Nada deste mundo vai nos separar devido à nossa língua, o crioulo. Nela conversamos, nela nos entendemos, é a nossa maior riqueza.” Ora em Cabo Verde e na Guiné-Bissau, sendo a língua oficial a portuguesa, os crioulos têm vindo a assumir maior relevância e até preponderância sobre a língua oficial. Nada de inesperado. Isso mesmo já notara Manuel Ferreira, num ensaio editado em 1988 (Que Futuro Para a Língua Portuguesa em África?), registando nessa altura a “progressão acelerada” do crioulo na Guiné, “disputando à língua portuguesa a função de veículo de unidade nacional”; e citando, no caso de Cabo Verde, um seminário no Mindelo, em 1979, onde “à língua portuguesa foi dada a categoria de língua segunda, enquanto o crioulo foi declarado língua primeira.” Nada de novo, portanto, em relação ao que aconteceu (e foi noticiado) recentemente, na segunda década do século XXI. Só que Manuel Ferreira não via nisto um perigo mas sim uma oportunidade. Africanista, amante da língua portuguesa e dos filhos directos dela (os crioulos de Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe), respeitador do papel das línguas nacionais de Angola e Moçambique, ele via (sem medos) o português crescer a par de todas elas, mas em cada país transformado “no plano da oralidade e no plano da escrita.” Tais transformações, notou ele, “levarão (levam ou levaram) à caboverdianização, à angolanização, moçambicanização, guineização, santomensização” da língua. “Se há uma língua, que é a língua portuguesa, há várias normas e logicamente umas tantas variantes: a de Cabo Verde, de São Tomé e Príncipe, a variante de Angola, Moçambique, do Brasil, de Goa, da Galiza, de Timor-Leste, a variante de Portugal.”
Várias normas, outras tantas variantes: foi disso que se fugiu ao impor, ignorando África, um acordo ortográfico que nasceu sobretudo de um arranjo entre grupos de Portugal e do Brasil. O que Manuel Ferreira deixou escrito ia, inteligentemente, no sentido contrário: a valorização dos crioulos e das línguas nacionais africanas podia fazer-se a par de uma apropriação da língua portuguesa, dando-lhe não um mas vários donos, e reconhecendo-lhe um futuro de unidade na diversidade. Lembrá-lo, agora, é também lembrar as culturas africanas a que ele dedicou parte da sua vida e dos seus estudos. As colectâneas No Reino de Caliban (três volumes, 1972, 1976 e 1986) e 50 Poetas Africanos (1989) testemunham-no, a par do seu próprio trabalho criativo, em ensaios (A Aventura Crioula, 1967, 1985), contos (Grei, 1945; Morna, 1948; Morabeza, 1958; Nostalgia do Senhor Lima, 1972) ou romances (A Casa dos Motas, 1948; Hora di Bai, 1962; Voz de Prisão, 1971).
Este sábado, nas Caldas da Rainha, será inaugurada no Museu José Malhoa (às 15h) uma exposição intitulada Manuel Ferreira: Capitão de Longo Curso, seguida de uma mesa-redonda intitulada Manuel Ferreira, quem és?; em Setembro, a Câmara de Leiria prevê organizar uma conferência internacional sobre a sua obra; e em Dezembro, no dia 16, Manuel Ferreira será evocado numa sessão no CCB, em Lisboa, que deverá coincidir com o lançamento de uma biografia do escritor, da autoria de João B. Serra, pela editora cabo-verdiana Rosa de Porcelana. Boas celebrações!