O animal à solta na boneca de porcelana
Na sua estreia na longa-metragem, o encenador teatral William Oldroyd filma a história de uma mulher vitoriana que se revolta contra o seu estatuto inferior. Lady Macbeth não é – felizmente! – o filme inglês do costume.
Era uma vez uma jovem forçada a um casamento de conveniência com um homem mais velho, que se vê confinada a uma mansão nos ermos da província britânica. É uma premissa comum a toda uma série de histórias góticas ou românticas da literatura britânica, onde o amor, o ódio e o segredo vão de mãos dadas – desde Jane Eyre ao Monte dos Vendavais passando por Rebecca ou por uma experiência cinematográfica recente como A Colina Vermelha. Em Lady Macbeth, contudo, o encenador teatral William Oldroyd e a sua argumentista Alice Birch subvertem a narrativa convencional da heroína em perigo. Transpondo para a Inglaterra rural do século XIX Lady Macbeth de Mtsensk, escrito em 1865 pelo russo Nikolai Leskov, e vão na direcção completamente oposta ao filme de prestígio ou ao drama de época à boa maneira inglesa.
Lady Macbeth, que tem vindo a dar que falar ao longo dos últimos meses, chega esta semana às salas portuguesas. É um filme compacto, claustrofóbico, malsão. Coloca o espectador como observador impotente de um pequeno teatro doméstico da crueldade, estufa venenosa onde uma mulher decide desafiar o status quo e usar a seu favor a sua fraqueza de ser mulher, como se não conseguíssemos desviar os olhos desta tragédia. Katherine, extraordinariamente encarnada pela jovem Florence Pugh, passa de vítima a carrasco, de serva a senhora, numa lenta e metódica ascensão feita de manipulações extraordinariamente encarnada pela jovem Florence Pugh.
A novela original já dera origem em 1934 a uma ópera de Shostakovich (aliás proibida pelo regime soviético) e em 1962 a um filme do polaco Andrzej Wajda, mas se há coisa que salta desde logo à vista nesta adaptação é o modo como Oldroyd explora o sistema de classes britânico, a par do à vontade visual e narrativo que prova ter atrás da câmara, notável para um primeiro filme (mesmo que com um par de curtas em carteira). Lady Macbeth não é teatro filmado nem a enésima variação sobre o drama senhorial britânico, mas sim um filme de corpo inteiro, o “anti-Downton Abbey” como o próprio cineasta diz entre risos ao Ipsilon por telefone, poucos dias antes do seu regresso a Portugal – onde encenou La Serva Padrona de Pergolesi no teatro Sá de Miranda, em Viana do Castelo – para apresentar o filme.
Lady Macbeth respeita muitas convenções teatrais, mas é tudo menos teatro filmado. Como foi passar do palco para o cinema, com um projecto pensado de raiz para o écrã?
Cursei Belas Artes antes de fazer teatro, e no âmbito desse curso tive acesso a câmaras e fiz algumas peças visuais e instalações. Decidi seguir teatro em vez de Belas Artes, mas fiquei sempre com interesse no potencial da imagem em movimento, e cheguei a usar video em várias produções teatrais. Comprei uma daquelas câmaras de bolso que existiam antes dos telemóveis gravarem imagem, e comecei a fazer uma espécie de diário visual das coisas que me interessavam, como se estivesse a aprender por mim próprio o que é que eu queria ver num enquadramento, como compôr uma imagem… Isso levou-me a reflectir sobre as diferenças entre cinema e teatro. Houve uma série de coisas que não quis abandonar do meu trabalho teatral: trabalhar com um argumentista em vez de ser eu a escrever o guião, ter tempo para ensaiar com os actores, usar um único cenário para termos controlo máximo… Mas sabia que corria o risco de cair no teatro filmado e confiei muito no meu director de fotografia e no meu montador para me ajudarem a fazer cinema e não teatro. Por exemplo, a escolha do écrã panorâmico para filmar as cenas de interior em vez de apostar nos grandes planos.
Lady Macbeth tem sido comparado a histórias góticas como Rebecca, mas vemo-lo mais como uma inversão dessas histórias, na linhagem de algo como o romance de Jean Rhys Vasto Mar de Sargaços [1966], que contava a história de Jane Eyre do ponto de vista da primeira mulher de Rochester...
Sim, sim. Como tínhamos um orçamento muito pequeno, não tentámos sequer fazer um drama histórico tradicional. Tirámos tudo aquilo que não era necessário, o que nos ajudou a fazer algo de muito intenso e concentrado. Percebemos que teria muito mais impacto ficar dentro desta casa, desta prisão criada para Katherine, e nesse aspecto há de facto semelhanças com Vasto Mar de Sargaços. Toda a gente no filme é de algum modo prisioneiro. Katherine é prisioneira na sua própria casa, Anna, a criada, é prisioneira da sua posição na sociedade, Alexander é prisioneiro do seu pai, e toda a gente está a tentar libertar-se…
Mas Katherine é a única que o consegue.
Exacto. No teatro, as mulheres de Ibsen ou de Strindberg, por exemplo, quando dão por si prisioneiras, não lutam desta maneira: fogem, matam-se, ou – o que é pior – sofrem em silêncio. São opções que a Katherine também tem, mas o que ela faz, de modo radical, é lutar com as mesmas armas. Basicamente, adopta o comportamento dos seus opressores, e começa até a usar a mesma linguagem e a ter a mesma atitude. Nos filmes de época britânicos há esta tradição das mulheres se terem de comportar de determinada maneira, mas a Alice Birch e a Florence Pugh fizeram com que a Katherine se recusasse a comportar-se dessa maneira. E decidimos deliberadamente que não o tentaríamos suavizar. Bem pelo contrário: íamos complicar ainda mais. Estamos muito habituados a ver protagonistas masculinos complicados, difíceis, dramáticos – quisemos colocar uma mulher nessa posição.
Isso vem muito de encontro à actual discussão sobre o sexismo e o papel secundário das mulheres no cinema.
Não foi forçosamente pensado... Eu estava à procura de uma história para contar na minha primeira longa, a Alice queria muito contar esta história e mostrou-me o livro de Nikolai Leskov. Eu conhecia a ópera de Shostakovich, mas não tinha lido o livro e pareceu-me ser um daqueles clássicos esquecidos de que nunca tinha ouvido falar, que tinha ao mesmo tempo algo de familiar e de desconhecido – O Monte dos Vendavais ou Thérèse Raquin ou Madame Bovary já se filmaram tantas vezes, mas Lady Macbeth de Mtsensk não. Acontecia ter uma personagem principal feminina, e isso permitia-nos dar uma oportunidade a uma das muitas excelentes jovens actrizes que não têm as oportunidades que merecem, e tivemos a sorte de encontrar uma actriz brilhante.
Florence Pugh, literalmente, agarra a personagem “pelos tomates”…
Exactamente! (risos) E isso implicou uma coragem enorme. É apenas o segundo papel dela no cinema, nunca tinha tido um papel principal, e tinha apenas 19 anos aquando das filmagens. A Florence, logo nas primeiras conversas, veio em defesa da Katherine. Teria sido impossível para uma actriz aceitar o papel se a julgasse à cabeça pelas suas acções, estar-se-ia sempre “fora” da personagem.
Katherine vai de vítima a carrasco no espaço de hora e meia, e Florence consegue fazer o espectador compreender essa mudança sem ter de a aceitar...
Precisamente, e era muito importante que fosse o público a decidir por si próprio. Ao mostrar o verdadeiro horror das suas acções, podemos deixar o público decidir da validade da sua justificação. Numa das versões da história, a morte de uma das personagens não era mostrada, e isso para mim não era uma boa ideia, porque dá ao espectador a possibilidade de tomar partido. A Alice e a Florence souberam contar a história da Katherine de um modo que nos ajuda a compreender porque é que ela age como age.
Lady Macbeth fez-me pensar muito na versão da Andrea Arnold do Monte dos Vendavais [2010], que é também rodada em exteriores e onde a personagem de Heathcliff é interpretada por um actor negro. Ora, no seu filme, Sebastian, o moço de estábulo com quem Katherine se envolve romanticamente, é também negro. Foi um filme que lhe serviu de “guia”?
Aquilo de que gosto nesse Monte dos Vendavais é que as pessoas no écrã pareciam gente verdadeira e não actores conhecidos a representar. Havia neles qualquer coisa de pessoal, de autobiográfico. E quis muito reproduzir isso em Lady Macbeth: sentir que estávamos a ver pessoas reais no écrã, a fazerem coisas sujas, perigosas, animais. Coisas que não se costumam ver nos filmes de época britânicos, e que a Andrea Arnold explorou, como se as personagens fossem criaturas ferais que vivem ao relento. O espírito da Katherine é esse: o de alguém que corre descalça à solta pela natureza, arranhando, lambendo as feridas, mordendo, abocanhando, mas que é suposta comportar-se de um modo muito educado, espartilhada como se fosse uma boneca de porcelana.