Estado paga 25 euros por cada sobreendividado encaminhado para a banca
Actividade da Rede de Apoio ao Cidadão Endividado sobrepõe-se ao que os bancos são obrigados a fazer e não ajuda onde ela é necessária.
A Rede de Apoio ao Cidadão Endividada (RACE), constituída actualmente por 22 entidades de direito público ou privado, já custou ao Estado 742.500 euros, em quatro anos. O saldo da actuação desta rede, criada em finais de 2012, fica-se por 29 mil processos enviados aos bancos, que muitas vezes se limitam a uma carta, o que em termos médios globais corresponde a um custo de 25,6 euros por cada cidadão seguido.
Nos 29 mil processos estão consumidores reincidentes, o que é muito comum neste tipo de situações, e o PÚBLICO apurou que a taxa de resolução efectiva das situações de dificuldade financeira é reduzida.
A RACE, que é praticamente desconhecida dos consumidores, limita-se a prestar, de forma gratuita, informação aos consumidores e a apoiá-los no pedido de ajuda ao banco, que se resume praticamente à elaboração de uma carta. Esta rede não pode fazer mediação, como acompanhar os clientes aos bancos e propor soluções concretas. Não pode fazer arbitragem ou conciliação, mesmos nos casos em vários centros de arbitragem têm serviços integrados na RACE.
Assim, o âmbito de actuação da RACE, criada pelo Decreto-Lei nº 227/2012, é muito reduzido, e sobrepõe-se a um conjunto de diligências que os bancos estão obrigados a propor aos clientes sobreendividados, nomeadamente a sua integração no PERSI, o Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento, e a guardar comprovativos dessas diligências.
A disparidade entre clientes endividados apoiados pela RACE em quatro anos fica evidente com o número de PERSI abertos. Só em 2016, as instituições de crédito abriram 718.479 processos, envolvendo 523.825 contratos de crédito (a diferença dos números é explicada pela reincidência no incumprimento, que dão origem à abertura de novos processos).
Os números da actividade da RACE foram envidas ao PÚBLICO pela Direcção Geral do Consumidor (DGC), avançou que, “desde o início [Janeiro de 2013] e até 31 de Dezembro de 2016, as entidades da rede deram resposta a mais de 29.000 pedidos”.
E acrescenta que, “com o objectivo de impulsionar o funcionamento da Rede, o Fundo para a Promoção dos Direitos dos Consumidores tem vindo a lançar diversas fases de candidaturas para o financiamento das actividade de apoio, aconselhamento e acompanhamento a desenvolver pelas entidades da rede”, e que, “neste âmbito e desde 2013, foram concedidos apoios no montante global de 742.500 euros”. A manter-se o ritmo, o montante de apoios vai atingir um milhão de euros.
O número anual de processos “respondidos” pela RACE, é divulgado pelo Banco de Portugal (BdP), no Relatório de Supervisão Comportamental, mas, refere o regulador, são da “exclusiva responsabilidade da DGC”.
Em resposta ao PÚBLICO, a instituição liderada por Carlos Costa recorda que, “as pessoas colectivas que pretendam aceder à rede devem ser reconhecidas pela DGC”, que “deve solicitar o parecer prévio do Banco de Portugal (…) que incide sobre a idoneidade e a adequação dos conhecimentos dos funcionários ou das pessoas que colaborem com as entidades requerentes do reconhecimento”. O supervisor refere ainda que “não é responsável pela fiscalização da actuação das entidades que formam a RACE (…) que compete à DGC”.
Apesar da insistência, a DGC não discriminou o número de consumidores apoiados por cada entidade, nem os valores pagos a cada uma, onde estão universidades, centros de arbitragem, mas também entidades privadas.
A DGC também não esclareceu os critérios de atribuição das verbas, que não é idêntica. A Associação Portuguesa de Direito do Consumo (APDC), com actuação em vários distritos da Região Centro, liderado por Mário Frota, diz não conhecer os critérios para essa atribuição. De acordo com informação obtida pelo PÚBLICO, em 2016, a APDC recebeu 10 mil euros, e a Associação de Melhoramentos e Recreativa do Talude recebeu 12 mil euros. A maior verba foi atribuída ao CIRIUS – Centro de Investigações Regionais e Urbanas, no total de 50 mil euros. O montante mais reduzido foi atribuído ao ATLAS – Cooperativa Cultural CRL.
A ajuda que faz falta
Apesar PERSI e do PARI, o Plano de Acção para o Risco de Incumprimento (PARI), que os bancos devem accionar ao mínimo sinal de dificuldades financeiras, os consumidores precisam de apoio efectivo, que, como se viu, não é dado pela RACE.
Patrícia Gomes, jurista do Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo de Lisboa, que teve um projecto integrado na RACE, que terminou recentemente, defende que os consumidores endividados precisam de “um apoio alargado”. Da sua experiência, esta jurista diz que, mesmo sendo obrigadas, "algumas entidades financeiras mostram pouca disponibilidade para apoiar os clientes sobreendividados". Patrícia Gomes lembra que consumidores “estão fragilizados, têm dificuldades em perceber o que lhes é proposto e precisam de vários tipos de apoio, incluindo psicológico” e que "os centros de arbitragem poderiam ter um papel muito importante na escolha do melhor caminho, que pode passar por acordos ou outros mecanismos, como a insolvência, quando se justifica".
Mário Frota, presidente da Associação Portuguesa de Direito do Consumo (APDC), lamenta “que se dispersem verbas por entidades que não se sabe bem quem são” e não se apoiem “as associações ou gabinetes que já deram provas do seu trabalho e que estão no terreno, prestando apoio gratuito, apesar das enormes limitações financeiras. A APDC tem protocolos com mais de uma dezena de municípios, uma área onde Mário Frota considera "importante actuar".
O gabinete de apoio aos clientes endividados, da Deco Proteste, não apresentou, por opção, candidatura à RACE. Em declarações ao PÚBLICO, Natália Nunes lembra que desde o início defendeu que a acção desenvolvida por essa rede era muito limitada, não podendo apoiar consumidores na renegociação de dívidas, que muitas vezes não são apenas financeiras. O gabinete dirigido por Natália Nunes, que presta apoio gratuito, recebeu 29.530 pedidos de ajuda em 2016.
Texto corrigido às 11h08, de dia 19 de Julho: a primeira versão da notícia incluía "25 mil euros", quando o número correcto é 25 euros. Pelo lapso, pedimos desculpa aos leitores e aos visados.