O libertino e o bibliófilo
35 anos de uma correspondência que atravessa os anos da ditadura portuguesa, a revolução e a democracia com a mesma liberdade: a de um libertino com voz própria e a de um grande senhor amante dos livros.
João Pedro George regressa com mais um volume dedicado àquele que a si mesmo se apelidava de “escriba”, mas que JPG prefere descrever como “escritor até aos ossos” (p.41). Ao longo de um encorpado (e excelente) prefácio, George apresenta sólidos e válidos argumentos para comprovar o que afirma. A leitura dos mais de cem postais e cartas enviados, entre 1966 e 2001, por Luiz Pacheco a Laureano Barros, reforçam esse juízo. Aparentemente, Pacheco e Laureano pouco teriam em comum.
Aquele, o que sabemos (em grande medida, graças ao labor de JPG), de uma desalinhada criatividade de impuro brilho, de pujante trabalho realizado nas piores das piores condições; este, um matemático e um reputado bibliómano, um abastado proprietário, profundo amante da ordem e da organização — conforme demonstra a monumental biblioteca que reuniu, e que foi posta à venda há pouco menos de dez anos, na cidade do Porto, após o seu falecimento. Um acervo que JPG descreve com simpatia e esmero, mas não sem uma ponta de ironia — “Instalado numa poltrona para sentir mais confortavelmente o calor natural dos livros, a amplidão de toda aquela riqueza acumulada (e que, por muitos mais anos que vivesse, nunca poderia assimilar)” (p.38) —, e sem poupar nos remoques — “Se vos interessa a minha opinião, a Câmara de Ponte da Barca é que deveria ter ficado com a biblioteca, o que aumentaria a capacidade de atracção do município.” (p.41). Ou não fosse George o biógrafo e estudioso de Pacheco que é. E, no entanto, apesar das óbvias diferenças, a correspondência revela a consideração de Pacheco por Laureano Barros, uma estima que se pressupõe mútua. “Pressupõe”, porque as cartas aqui apresentadas são apenas as que Pacheco escreveu a Laureano; e nem mesmo essas são todas as que haverá, como adverte JPG. As cartas que acabam de ser editadas foram arrematadas no leilão portuense, e foi apenas a essas que JPG teve acesso. Das que Laureano terá dirigido a Pacheco, dirá a atribulação permanente da “Pachecal figura”. Nas suas próprias palavras, melhor guia em terreno tão acidentado: “Há anos, desde que deixei Massamá, que fazia de saltimbanco, por vários poisos de Lisboa, Montijo, Lagos, Condeixa-a-Nova, etc.” (p.185) Perdidas, destruídas, quem sabe que destino terão levado as réplicas postais de Laureano Barros.
A aproximação entre ambos deu-se pela bibliofilia de Laureano, que contactou Pacheco em busca de espécimes bibliográficos da Contraponto e de Pacheco. Muita da correspondência que se seguiu, ao longo de 35 anos, versaria, naturalmente, sobre edições levadas a cabo por Luiz Pacheco. Mecenas tão discreto quanto fiável, Laureano financia empreitadas editoriais e salva bastas vezes Pacheco dos seus infindáveis padecimentos de saúde, da falta de fundos e de todo um sortido crescente de tribulações: com a justiça, com credores, com a vida que lhe ia acontecendo.
Conforme recorda João Pedro George, e este livro atesta, a correspondência de Luiz Pacheco aqui contida fornece um panorama ímpar do escritor e da sua circunstância. Mudança permanente de poiso, constante falta de fundos para renda de casa, alimentação, desempenhar do prego onde invariavelmente se encontrava a “charrua”, ou seja a máquina de escrever. Por fim, mas nem por isso com menos importância, o que Pacheco descreve num resumo elucidativo: “continuo a viajar por hospitais” (p.191). Realmente doente — a asma, desde os três anos, como contou em entrevista em tempos concedida a JPG, o enfisema pulmonar, bronquite, quase cegueira —, completava o temível quadro clínico com a hipocondria que partilhava com Camilo. Em 1984, quando ainda lhe restavam quase 25 anos de vida, assim se despedia de Laureano: “Um forte abraço do, cada vez mais achacado, o Luiz Pacheco” (p.225). Há, na verdade, páginas destas cartas que lembram, quase textualmente, certos passos camilianos — “Lá por Lagos (regressei a 6 de Maio, véspera dos meus 55 anos, para morrer perto de casa — já passou, é o meu neurótico pavor da Mofina ou o meu instinto de conservação exacerbado), julguei que findava.” (p.168) Mas não só na obsessão pela doença, Pacheco era um camiliano — “Em matéria de calmantes, vou desde o chá de tília, barbitúricos, probamatos, até ao triptyzol que já é mesmo para louquitos. Tomo esta cègada vai para 20 anos, comecei no seditol que já nem se usa, priscofen, oblivon, valium, lybrium, etc. E bebendo-lhe em cima.” (p.195) Porque não o era propriamente, ou não apenas, pela bibliografia — embora tenha editado Camilo, e a sua fraseologia o recorde com facilidade: “[Crítica de Circunstância] a sofrer a ressaca das vaidades irritadas e irritantes” —, mas sobretudo pela vida. Também ele, um “grilheta” da escrita, isto é, um profissional permanentemente escrevedor, a braços com ingentes problemas na justiça, por matéria conjugal, mas também um polemista dos mais ferozes. Mas, aspecto menos vezes lembrado, aproxima-o de Camilo o ter sido um cultor da língua portuguesa. Poucas vezes terão parecido menos artificiais expressões como “Mestre” (p.57), ou “Mestre Aquilino” (p.195), do que quando empregadas por Pacheco. Pacheco, esse, que, de resto, repetidamente atentava, com desgosto, nos solecismos e ditos escorregadios do seu tempo — “atempadamente, como é horrível agora ler-se” (p.168); “desestabilizado, como agora se diz” (p.203). Nem será preciso lembrar o famoso caso do “esplendor” grafado com “x” que um minucioso (e irritadíssimo) Pacheco, revisor que foi, emendou à mão na capa do Libertino. A consciência de mister de Pacheco ia a pontos que raramente se têm notado. Não será simples “consciência de classe”, nem puro mercenarismo o que o fez anotar: “Mas sem uma Sociedade ou cooperativa de escritores (e de tradutores, de críticos, de revisores, de leitores, acima de tudo) nada feito.” (p.71), deplorando as condições de trabalho, e a (má) qualidade do labor editorial de tradutores e revisores — funções que Pacheco desempenhou, aliás.
Alguém que podia dizer, com toda a honestidade, e com marcas dolorosamente visíveis, “a mudança é o meu signo” (p.225), só poderia advogar uma intransigente identificação entre vida e escrita. Entre entrega literária e assunção do que se deixava disperso em papéis dos mais vários — “Não se pode praticar a libertinagem e alinhar com o sistema. Por isso, o papel do libertino é quase sempre negativo. Temos de estar atentos aos tabus, tiques, taras da sociedade onde vivemos.” (p.201) Oposto ao compromisso e à mansuetude, acusador constante da “veloz e atenta defesa dos interesses constituídos, à volta da gamela literária” (p.71), Pacheco marginalizou-se pela sua liberdade. Pela arriscadíssima e sujíssima escolha da mais real liberdade. A de só depender de si e da ajuda imprevisível dos desinteressados ou dos mais interesseiros impostores, tão maus ou piores do que o próprio. Daí que lhe pareça tão necessário verberar sem clemência tudo quanto não signifique a verdade do escrito vivido, experimentado, sem apriorismos — “tudo postiço, tudo literatura” (p.51).
O Grilo na Varanda é a súmula de uma existência saltimbanca, atribulada, sujeita aos mais variados percalços. Pacheco descreve-a com uma sinceridade de inventário desprendido e não sem humor — “Por princípio, guardo tudo; e por azares vários, volta-que-não-volta perco dossiers inteiros e muito bem arquivão e ordenados” (p.69). Foi consciente do seu nomadismo que confiou a Laureano Barros o encargo de guardar as suas cartas e outro material que, ao longo dos anos, lhe foi endereçando em diversas remessas — “urge pôr a bom recato, em boas mãos, alguns documentos. Não lhos entrego como fiel depositário: são seus” (p.76). As provas de confiança reiteram-se, de resto — “Nunca tive tão fiel depositário como o Laureano.” (p.208) A elas se opõe, irresistivelmente, a dispersão incorrigível de Pacheco — “Nunca devia (eu) escrever cartas sem o selo ao lado e o envelope e o marco do correio à vista.” (p.198)
A improvável relação entre o libertino e o bibliómano fica ainda documentada no filme Laureano Barros, Rigoroso Refúgio, realizado por Paulo Pinto, que acompanha a edição da correspondência. Dedicado a Laureano Barros, o documentário revela um pouco mais sobre o grande coleccionador de livros e homem de elevada dimensão cívica.