“Doctor não tem género em inglês”, afirma dicionário em defesa de Jodie Whittaker
A revelação da primeira protagonista feminina de Doctor Who originou alguma polémica, mas o dicionário Merriam Webster tweetou o seu argumento. Theresa May já aprovou a escolha.
Em Janeiro, quando Peter Capaldi anunciou que deixaria Doctor Who no final do ano, corriam rumores de que a 13.ª encarnação da icónica personagem poderia ser uma mulher. A confirmação chegou no passado domingo com a revelação do rosto de Jodie Whittaker num trailer emitido após a final do torneio masculino de Wimbledon. A regeneração da personagem é sempre aguardada com ansiedade pelos espectadores e, assim que foi divulgado que a nova temporada seria encabeçada por uma mulher, as redes sociais foram tomadas por um frenesim de opiniões divididas. Como nota a BBC, “algumas pessoas discutiram o grande exemplo que a nova Doctor seria para as raparigas e para as mulheres, outras questionaram por que é que tinha demorado tanto tempo a acontecer e alguns afirmaram peremptoriamente que a personagem foi feita para ser masculina”.
Entre os comentários de discórdia que argumentavam que “Doctor Who não é Nurse (enfermeira) Who” e que “O Doctor é um Time Lord (Senhor do Tempo) e não uma Time Lady (Senhora do Tempo)”, a conceituada editora de dicionários Merriam-Webster utilizou a sua conta de Twitter para sair em defesa da nova protagonista da série. “Doctor [é uma palavra] que não tem género em inglês”, pode ler-se no tweet. Jodie Whittaker já se havia dirigido aos fãs de Doctor Who para abordar a questão do género na regeneração que deverá ser introduzida, como habitual, no especial de Natal. “Quero dizer aos fãs que não se assustem com o meu género. Porque esta é uma altura realmente entusiasmante e Doctor Who representa tudo o que é entusiasmante na mudança. Os fãs já assistiram a tantas transformações e esta é apenas mais uma, diferente, mas não pavorosa”, apelou a actriz em declarações ao jornal britânico The Telegraph.
Jodie Whittaker não é uma cara desconhecida da televisão britânica – interpretou Beth Latimer na série Broadchurch – mas reconhece o peso da responsabilidade que implica reinventar uma personagem que atravessa gerações. “É completamente extraordinário, como feminista, mulher, actriz, ser humano, como alguém que quer continuar a ultrapassar os seus limites e a desafiar-se a si mesma, e a não ser posta numa caixa com base no que te dizem que podes ou não ser”, explicou Whittaker. A série vai reinventar-se não só pela nova protagonista, mas porque a saída de Peter Capaldi coincide com a do showrunner Steven Moffat, que dá lugar a Chris Chibnall, showrunner de Broadchurch.
Foram vários os colegas de profissão, actores de outras temporadas e restantes whovians que aproveitaram a ocasião para congratular a actriz. Karen Gillan, que interpretou a companheira de Doctor entre 2008 e 2013 ao lado de David Tennant e Matt Smith, e a actriz Gillian Anderson, a agente Dana Scully de The X-Files, foram apenas algumas das figuras que elogiaram o “romper do molde” desencadeado pela aparência feminina da personagem. A escritora Jenny Colgan, que escreveu vários livros Doctor Who, disse estar “muito feliz” com a decisão da BBC. “Quando era pequena, achava que era a única menina em todo o mundo que era fã de Doctor Who”, confessa. O vocalista dos Blink-182, Mark Hoppus, abordou a polémica recorrendo à ironia: “Oh, incrível, um Doctor Who feminino. O que se segue? Médicas femininas? Pilotos femininos? Cientistas femininas? Mães e irmãs femininas? MULHERES femininas?”.
Nem mesmo as mulheres da política se coibiram de expressar o seu agrado perante a escolha de uma mulher para encabeçar a histórica trama britânica. “Existe muita versatilidade e os espectadores têm que acreditar sempre que o Doctor é a pessoa mais inteligente da sala, por isso acho que eles [a produção] tendem a ser certeiros no casting”, disse Theresa May, primeira-ministra do Reino Unido, em entrevista à BBC News. Já a primeira-ministra escocesa, Nicola Sturgeon, usou o Twitter para dirigir-se a Jodie Whittaker: “Bem-vinda, senhora”.
Emitida pela primeira vez em 1963, a série mostra as aventuras de um membro de uma espécie alienígena que viaja no espaço e no tempo, tem dois corações e assume uma nova forma física quando morre. A regeneração da personagem já permitiu que fosse interpretada por mais de 12 actores desde que foi criada.
Uma nova era para as mulheres na ficção científica?
O anúncio de que Jodie Whittaker substituiria Peter Capaldi, dando início a uma nova era dentro do mundo de Doctor Who, foi um assunto muito falado na imprensa britânica e fez, inclusive, capa de alguns jornais. No entanto, tablóides como The Sun e Mail Online têm sido muito criticados por usar o pretexto da notícia para publicar fotografias de Jodie Whittaker em nu parcial ou integral em trabalhos anteriores. O grupo de activistas Equal Representation for Actresses (ERA), manifestou ao The Guardian a sua desilusão face à cobertura feita pelas duas publicações. “Estamos surpresos e chocados com a decisão irresponsável e redutora do Daily Mail [o Mail Online é propriedade do Daily Mail] e do The Sun de publicar um artigo com fotografias da Jodie em várias cenas de nudez”.
Ter uma mulher a representar um papel que foi assumido por homens desde os anos 1960 é apenas mais um indicador de que o espaço feminino na indústria televisiva e cinematográfica está continuamente a expandir-se. É o caso de filmes como o recente Wonder Woman, protagonizado por Gal Gadot, Jogos da Fome, protagonizado por Jennifer Lawrence ou de personagens como Rey (Daisy Ridley) e Jyn Erso (Felicity Jones) no universo Star Wars ou séries como A Guerra dos Tronos, em que as mulheres são retratadas como líderes e são posicionadas no centro da trama. “Há 50 anos atrás a ideia de mudar o protagonista de Doctor Who era revolucionária. Em 2017, mudá-lo do masculino para o feminino não deveria causar tanta agitação”, opina Will Howells, que escreve para a revista Doctor Who, à BBC.
A actriz Zoe Saldana, que tem no seu repertório Avatar, Star Trek e Guardians of the Galaxy, disse numa entrevista ao The Telegraph que o seu fascínio pela ficção científica se deve à liberdade que oferece. “Faz-me sentir super-humana porque, obviamente, desde cedo fui chamada a atenção por não ser uma pessoa convencional devido à cor da minha pele, ao meu género ou ao meu background cultural”, explicou. “Acho que a ficção científica me deu a capacidade de, enquanto artista, ser alheia à cor ou ao género, imaginar e reinventar-me para ser o camaleão que os actores devem ser”.
A BBC recorda, no entanto, que embora os holofotes estejam cada vez mais postos nas mulheres no pequeno e grande ecrã, a sua importância no género não é de agora. Basta pensar na Princesa Leia (Carrie Fisher) de Star Wars ou na Capitã Janeway (Kate Mulgrew) na série Star Trek: Voyager.