}

Pensar a cultura a partir das livrarias

O espanhol Jorge Carrión, inveterado viajante, escreveu um livro que é mais do que um ensaio em redor de livrarias. Em tom melancólico, vai contando também histórias de leitores e de escritores em lugares que são uma “representação do mundo”.

Foto
Jorge Carrión admite que a sua paixão por livros e livrarias pode radicar numa “necessidade psicológica” inscrita no inconsciente: “Os meus pais não estudaram, teríamos em casa talvez uns 15 livros” Rui Gaudêncio

“Todas as livrarias são um convite à viagem”, escreveu o catalão Jorge Carrión (n. 1976) no seu mais recente livro, Livrarias: um volume que de alguma forma é inclassificável, pois ao mesmo tempo que se trata de um “livro de viagens”, levando o leitor em visita por muitas livrarias espalhadas um pouco por todo o mundo, é também um ensaio (algo insólito na sua forma) que pensa a história da cultura a partir destes lugares, da sua geografia e do seu passado. Foi isso mesmo que Carrión contou ao Ípsilon na sua recente estada em Lisboa para promoção do livro, quando lhe perguntámos qual a razão do seu interesse na história das livrarias: “São territórios sobre os quais muita pouca gente pensou, territórios quase inéditos em termos de estudos. E a partir dos quais se pode pensar a história da cultura de uma óptica geral. A mim interessa-me muito, no xadrez, o movimento do cavalo: esse movimento lateral, um pouco inesperado, é o movimento que têm de assumir os estudos culturais. O que procuro são objectos culturais, ou espaços culturais, a partir dos quais se pode pensar, com uma certa diferença, a cultura. As livrarias, como as passagens [as ruas estreitas] em Barcelona, são lugares periféricos que te permitem pensar com uma certa originalidade a cidade, no caso das últimas. E as livrarias, e a história pessoal que têm da literatura, dão a oportunidade de as estudar a partir de um tempo em que os livros não eram considerados centrais.”

Jorge Carrión — que é professor na Universidade Pompeu Fabra, em Barcelona — conta no seu livro que este interesse sistemático (refere-se-lhe como o primeiro “carimbo” que recebeu numa livraria) começou em 1998, quando viveu por uns meses na Cidade da Guatemala. O país era sacudido pelos estertores do assassinato de um bispo (o rosto visível da Oficina de Derechos Humanos, que apresentara pouco antes, em quatro tomos, o relatório Guatemala — Nunca Más, no qual se documentavam cerca de 54 mil violações dos direitos humanos cometidas ao longo dos últimos anos da ditadura militar) — e, nesses dias conturbados, Carrión fez da Librería del Pensativo (e do seu bar-galeria) uma espécie de lar onde passava a maior parte do tempo. Mas, ao Ípsilon, confidenciou que, depois da publicação do livro, veio a lembrar-se de que esse seu interesse talvez tivesse começado mais cedo, em 1995, em Londres, quando estabeleceu uma cartografia afectiva da cidade tendo as livrarias como pontos de referência. Sobre os motivos por que visita livrarias de maneira quase compulsiva em cada nova cidade a que chega, admite que talvez a resposta esteja no seu inconsciente, numa “necessidade psicológica”: “Em minha casa não havia livros. Os meus pais não estudaram, e teríamos talvez uns 15 livros. Mas sempre me compraram os que quis, e mais tarde deram-me também o suporte económico para ir comprando enciclopédias, o que à época, muito pré-Internet, era uma coisa normal. Talvez durante estes últimos 20 anos eu tenha tentado criar algo que preencha esse vazio da minha infância, e por isso me interessem de novo as livrarias.”

O que lhe interessa quando as visita, para além dos títulos mais recentes postos à venda, ou de outros mais raros que fazem o catálogo dessas casas, é o conjunto que tem diante de si, “porque em cultura tudo tem a ver com uma dialéctica entre o reconhecimento e a novidade”: “Quando se vê um filme ou se lê um romance, há sempre uma tentativa de identificar o discurso com o que se viu ou leu antes, e é esse resultado que faz a diferença. Depois há aspectos que são sempre iguais: por exemplo, todas as livrarias terão na entrada os livros relacionados com a cidade em que se localizam.” Confessa ainda que lhe interessa muito o modo como cada livraria tenta cativar as crianças para a leitura e a extensão e o tipo de espaço que lhes dedicam (e com que elementos, se com jogos, se com almofadas, ou com outras estratégias mais inventivas). E exemplifica: “Estive ontem na Pó dos Livros [em Lisboa], e interessaram-me muito aquelas pequenas vitrines, como num museu. Interessam-me também as fotografias, tudo o que têm exposto. É o reconhecimento destes elementos que me leva à tipologia internacional.” Pessoalmente, gosta de livrarias de viajantes, ou de viagens, porque “são as únicas nas quais a cartografia tem o mesmo protagonismo que o verso e a prosa”, e fala de uma em Amesterdão, a Pied à Terre, onde estão espalhados dezenas de globos terrestres “que nos olham de soslaio enquanto procuramos guias e outras leituras”.

Uma representação do mundo

Livrarias é um singular ensaio que tem a melancolia como eixo central, em volta do qual Carrión, ao mesmo tempo que leva o leitor em visita, e lhe vai contando histórias passadas em alguns desses lugares, apresenta livros lidos como despojos de um tempo, ruínas da textura do passado e das ideias que sobrevivem ou sobreviveram; as livrarias como restos arqueológicos, pois cada uma condensa o mundo (à sua maneira), e a ordem cartográfica desses lugares é a sua singular representação do mundo.

É isso que faz quando aborda um conto, O Mendel dos Livros, escrito em 1929 por Stefan Zweig e ambientado na Viena do adeus ao império, um conto que fala de leitores e de livros, e de um lugar que, não sendo uma livraria, o Café Gluck, um café menor, é desses templos de peregrinação para todos os que amam os livros. Carrión diz ainda, na sua escrita solta e que convida a uma leitura atenta, que O Mendel dos Livros faz parte de uma série de relatos contemporâneos que giram à volta da relação entre a leitura e a memória (numa outra perspectiva, entre a leitura e o esquecimento) — uma série que poderia começar em 1909 com um conto de Luigi Pirandello, Mondo di Carta, e acabar em 1981 com a Enciclopédia dos Mortos, de Danilo Kis, passando pelo referido Zweig e por Jorge Luis Borges (pois os seus contos, sobretudo O Aleph e Funes, o Memorioso. são “absolutamente complementares”, na perspectiva singular de Jorge Carrión).

Fala-nos também de livrarias que acolhem comunidades de leitores, de como se convertem numa moderna ágora, um lugar de encontro em volta das ideias que os livros guardam. E fala disto para nos dizer que o modo como olhamos para a história das livrarias é muito diferente do modo como olhamos, por exemplo, para a história das bibliotecas; que a nossa percepção de cada uma varia com a afectividade dispensada. E pelo meio cita Walter Benjamim: “Seguimos pelo corredor estreito e escuro até entrar numa livraria em saldo, onde volumes atados e empoeirados falavam de todas as formas de ruína.”

Para Carrión, as livrarias são em geral muito parecidas dentro de um país, como se esses lugares fossem aproveitando elementos do que lhes está mais próximo, do que lhes é vizinho. Mas as grandes livrarias internacionais, essas reproduzem modelos de outros países, e dá o exemplo de uma das livrarias mais conhecidas de São Francisco que há décadas, quando nasceu, teve o propósito de imitar uma livraria de referência em Paris  — pois há sempre referências, não apenas arquitectónicas mas sobretudo de cartografia afectiva. Nos livros que lê, argumenta, o lado afectivo acaba por impor-se: “Lembro-me de onde os comprei, em que cidade e em que livraria. A leitura para mim é uma dupla experiência de viagem, aquela que o livro propõe e a minha viagem afectiva à memória desse objecto.”

São inúmeras as histórias contadas com deleite neste livro, histórias de leitores (de Hitler a Fidel, passando por Estaline e Mao Tsé-Tung), de um grande número de escritores (sobretudo do século XX), e de lugares de livros um pouco por todo o mundo.

Sugerir correcção