Comandos: castigos infligidos “não eram permitidos” pelo Exército

Advogados que apresentaram pedido de indemnização no caso de Hugo Abreu dizem que o médico e enfermeiro não prestaram a assistência necessária e urgente.

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Rui Gaudencio

A partir da análise dos acontecimentos ao longo do dia 4 de Setembro, que terminou com a morte de Hugo Abreu declarada às 21h30 e a transferência de Dylan da Silva para o hospital, os advogados Ricardo Sá Fernandes e Andreia Pais Martins argumentam, no pedido de indemnização civil de Hugo Abreu, que os instrutores sabiam que os castigos infligidos durante a prova "não eram permitidos pelo Exército Português”.

Acrescentam que teria sido possível para a equipa sanitária, liderada pelo médico arguido, concluir que a situação clínica dos instruendos era grave e transferir (para hospitais) todos os 23 que estavam a ser assistidos, na tenda de campanha, durante a tarde desse mesmo dia.

O enfermeiro, apesar das “habilitações técnicas para se aperceber dos sinais de degradação neurológica e desidratação profunda”, não prestou “a assistência necessária” e não deu prioridade aos casos mais graves de Hugo Abreu e Dylan da Silva na escolha de quem devia ser assistido dentro da ambulância climatizada, lê-se no documento. Ambos ficaram na tenda, sem ar condicionado, mesmo depois de se verificar que o tratamento a soro "não surtira qualquer efeito”, nos dois doentes, não tendo nenhum deles registado melhorias.

Às 16h, Hugo Abreu, de acordo com a acusação do Ministério Público, já não reagia a quaisquer estímulos e gemia. Tinha sido retirado da prova 15 minutos antes. Só às 19h o médico arguido solicitou à equipa sanitária que preparasse os dois doentes para serem levados e internados num hospital. O estado de Hugo Abreu continuou a agravar-se, mas o médico abandonou o Campo de Tiro de Alcochete. Quinze minutos depois, Abreu entrou em paragem cardiorrespiratória.

Foi então que, "sem qualquer experiência” e “por tempo indeterminado”, o enfermeiro arguido utilizou um Desfibrilhador Automático Externo, efectuando “manobras de reanimação durante quase uma hora”. Em resultado disso, o doente entrou em “assistolia” (diminuição da força de contracção cardíaca e dilatação excessiva das cavidades do coração, o que leva à sua paragem).

Dylan da Silva foi transferido à noite para o Hospital do Barreiro e só depois para o Hospital Curry Cabral. Nesse hospital "entrou em falência neurológica, respiratória, hepática e renal” e já tinha “um elevado risco cirúrgico”, agravado pela suspeita de um edema cerebral e pelo facto de o fígado disponível (para transplante) não ser compatível com o seu grupo sanguíneo.

Isso mesmo salientou o médico especialista em Medicina Interna e Medicina Intensiva no Hospital Curry Cabral, quando inquirido em Maio deste ano no âmbito do processo do inquérito-crime às circunstâncias em que morreram os dois recrutas no início de Setembro de 2016 e respondendo a perguntas sobre as razões por que não foi feito um transplante de fígado a Dylan da Silva.

No mesmo processo judicial, estão também depoimentos de testemunhas que dizem que, durante a instrução de preparação para o curso 127, em Junho, Dylan da Silva foi "violentamente agredido" com "pontapés, joelhadas e socos em várias partes do corpo" por um dos principais instrutores 1.º sargento, que "ficou furioso" quando o recruta, a correr, passou por ele "de raspão". 

Algumas testemunhas presenciaram as agressões, outras ouviram Dylan da Silva a desculpar-se enquanto era agredido. Depois disso, Dylan da Silva "apareceu na formatura da tarde, muito nervoso, a chorar e disse-lhes [aos colegas] que tinha receio" que o instrutor "o tivesse 'marcado' para o curso". O mesmo 1.º sargento foi mais tarde denunciado e acusado por alegadamente ter forçado Hugo Abreu a comer terra quando este já entrara em convulsões, no mesmo dia 4 de Setembro, o primeiro da Prova Zero.

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