Estado de esquizofrenia política
A questão suplementar – e decisiva – é saber se o cruzamento destes estados patológicos não tornará inevitável uma deriva que o país tem sabido evitar até agora: o populismo.
Diz o dicionário (Lello) sobre a palavra esquizofrenia: "Doença mental caracterizada pela incoerência mental e pela ruptura de contacto com o mundo exterior". Ora, o debate parlamentar sobre o Estado da nação foi um exemplo instrutivo de como essa doença ameaça contaminar os comportamentos políticos.
A incoerência mental revelou-se comum quer ao Governo e os seus aliados da esquerda, quer à oposição da direita. Não é decerto uma novidade, mas o facto de se ter manifestado na sequência de duas situações graves – Pedrógão e Tancos – e da demissão de três secretários de Estado, investigados pela Justiça devido à aceitação de convites da Galp para assistirem ao Europeu de futebol, criou um ambiente propício à esquizofrenia política.
Para além das duras acusações contra a falta de liderança revelada pelo Governo nas últimas semanas, a oposição continua refém de uma obsessão recorrente de que não consegue libertar-se: o saldo positivo das contas nacionais e os índices socioeconómicos que favorecem a actual gestão governativa. Ou seja: segundo o PSD e o CDS, esse balanço deve-se às políticas seguidas pela anterior maioria de direita, à "austeridade dissimulada" do Governo socialista e aos seus estratagemas orçamentais (as famosas cativações), mas nunca, jamais, em tempo algum, ao facto de ter ocorrido uma mudança de sentido e de rumo, com a reversão de medidas impostas pela governação precedente. Se o país está eventualmente melhor, isso deve-se ao Governo anterior, ainda que os factos indiquem o contrário – e de as previsões catastrofistas de anteriores governantes, como Passos Coelho e Assunção Cristas, se terem revelado infundadas. Eis um reflexo típico da "ruptura de contacto com o mundo exterior" – começando, desde logo, pela recusa em enfrentar a popularidade do Governo socialista.
Em contrapartida, o Governo insiste em cavalgar essa onda, desvalorizando – ou iludindo – aquilo que os acontecimentos de Pedrógão, Tancos ou as demissões dos secretários de Estado puseram em evidência: as graves disfunções da máquina administrativa, a falta de uma visão estratégica para o país em áreas cruciais para o seu desenvolvimento e segurança, ou ainda a ligeireza insustentável de sentido ético revelada pelos secretários de Estado demissionários (independentemente da discutível natureza criminal dos seus comportamentos). São outros sinais de "ruptura de contacto com o mundo exterior".
A falta de sentido de Estado – argumento utilizado pelo PS e o Governo em defesa das chefias militares envolvidas no caso de Tancos – não pode ser invocada para impedir que se apurem responsabilidades (civis ou castrenses). Isso é que é falta de sentido de Estado. E as desculpas anedóticas apresentadas pelo chefe principal das Forças Armadas sobre o roubo das armas – afinal, valiam não mais do que 34 mil euros e algumas delas não serviriam para nada – apenas agravam os receios sobre o efectivo apuramento das responsabilidades e as garantias indispensáveis em matéria de segurança.
Resta, enfim, a esquizofrenia política do PCP e do Bloco: mantêm-se fiéis a Costa, mas insistem num discurso que parece ostensivamente contraditório com essa fidelidade. Percebe-se a sua frustração – que se arrasta, aliás, desde o início da "geringonça" – com o incumprimento de metas ambicionadas pelos respectivos eleitorados. Mas também se percebe que parecem cada vez mais reféns da aliança com um Governo cujo desempenho lhes merece tantas declarações de inconformismo. Ora, essa incoerência mental traduz também uma "ruptura de contacto com o mundo exterior", incluindo o dos constrangimentos europeus.
Entretanto, a questão suplementar – e decisiva – é saber se o cruzamento destes estados patológicos não tornará inevitável uma deriva que o país tem sabido evitar até agora: o populismo.