Regresso emocionado a Janesbourg, com orquestra

No Anfiteatro ao Ar Livre do Jardim Gulbenkian, na noite de 14 de Julho, Jane Birkin mostrou um trabalho de fina sabedoria e fôlego: Serge Gainsbourg em excelente versão sinfónica.

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Jane Birkin e Serge Gainsbourg nos anos 1960-70 (o concerto de sexta-feira na Gulbenkian não pôde ser fotografado) DR

É, há muitos anos, uma inevitabilidade em Jane Birkin o regresso à obra e à memória de Serge Gainsbourg. Talvez só exista idêntico paralelo noutro par das artes e na voz de uma outra actriz-cantora: Hanna Schygulla a zelar pela memória de Rainer Werner Fassbinder. Mas Jane Birkin, actriz inglesa feita há décadas cantora francesa (hoje com 70 anos de vida e mais de 50 de carreira), transforma num acto de amor cada novo regresso a essa entidade improvável a que podemos chamar Janesbourg, resultando da fusão tão física quanto criativa entre os dois e da qual é ela a justa guardiã e herdeira. “Tenho comigo o melhor de Serge Gainsbourg e tenho de agradecer isso”, disse ela na Gulbenkian, ao público que ali foi ouvi-la. E Gainsbourg Sinfónico, o espectáculo, dá-lhe inteira razão.

Um aviso, primeiro: Gainsbourg, em vida, além da inspiração que buscava na chamada música clássica (em compositores como Beethoven, Brahms, Chopin, Dvörak ou Grieg) também actuou e gravou com orquestra desde os anos 1950, com arranjos de maestros como Alain Goraguer, Michel Colombier, Jean-Claude Vannier ou Arthur Greenslade. No entanto, a abordagem agora proposta à sua obra, com arranjos (superlativos!) do pianista japonês Nobuyuki Nakajima, vai além dessas experiências, propondo a reinterpretação de uma vintena de canções em “voz” sinfónica sem sobrecargas nem arabescos mas sim com a força e a potencialidade que tal recurso permite. O que fez com que, no Anfiteatro ao Ar Livre do Jardim Gulbenkian, na noite de 14 de Julho, a Orquestra Gulbenkian soasse em diversos registos, ora como sinfónica ora como big band, emergindo cordas, sopros e demais secções orquestrais na exacta medida do espírito que reconhecemos intrínseco a cada canção, mas com opções surpreendentes que verdadeiramente as engrandeceram.

Se em Arabesque (de 2002, que Portugal só viu em 2004), Jane Birkin mostrava em palco uma invejável jovialidade, essa aparência só em parte se desvaneceu. De calças escuras justas e larga camisa de seda branca (idênticas às que usou, por exemplo, no Teatro Antigo de Orange, em Junho passado, quando ali actuou com a Orquestra Nacional de Montpellier), Jane Birkin mantém no olhar e no seu clássico sorriso o mesmo espírito de sempre, movendo-se com desenvoltura mas sem os passos de dança de apresentações anteriores. Percorreu todo o repertório do disco Gainsbourg Symphonique, e na mesma exacta sequência, com duas pequenas alterações: começou com Ces petis riens (quinta canção do disco, ainda com o microfone “à procura” da sua voz) e, depois, sim, já mais audível, retomou o alinhamento original: Lost song, Depression au-dessus du jardin, Baby alone in babylone e Physique et sans issue. Depois veio a segunda alteração: Ballade de Johnny-Jane, que não integra o disco e que ela cantou encostada ao piano de Nobuyuki Nakajima. Um belo momento, e num belo cenário, que só o inevitável ruído dos aviões (e são tantos, os que ali se ouvem, no espaço de um concerto) perturbou. Mas nenhum avião tira o sorriso a Jane. Um solo de violoncelo introduziu L’aquoiboniste, sem piano, tal como a seguinte Valse de melody.

Fuir le bonheur de peur qu'il ne se sauve antecedeu a batida jazzística de Requiem pour un con e a suavidade cristalina de Une chose entre autres, com a orquestra, no final, a erguê-la aos céus. Amour des feintes, Exercice en forme de z (esta com o maestro Jan Wierzba a simular um passo de dança enquanto a orquestra swingava a preceito) e Manon conduziram-nos à belíssima La chanson de Prévert. Viriam, ainda, Les dessous chics, a minimalista L’amour de moi (pontuada a harpa), Pull marine e La gadoue, a fechar.

Não acabou aqui. Respondendo aos muitos aplausos (o espectáculo esgotou, nas bilheteiras), Jane Birkin voltou com Jane B e L’anamour e, depois, ficando a Orquestra Gulbenkian a interpretar instrumentais de Serge, incluindo Je t’aime… moi noin plus, voltaria ao palco para uma última canção, aquela que nem Serge nem ela deixavam de parte: La javanaise. “Nous nous aimions/ le temps d’une chanson.”

Na verdade, foi no tempo de 22 canções, mais os temas orquestrais, e Jane pareceu verdadeiramente feliz com o resultado (como, aliás, o público). Abraçou uma violista por um solo mais emotivo e vibrante, abraçou o maestro, abraçou (cruzando os braços sobre o peito) toda a audiência. Se Serge, vivo, poderia ter resmungado, mesmo estando feliz, Jane (que guarda o seu melhor, palavras dela), vibrou. Gainsbourg Sinfónico é um monumento enérgico à obra eterna de Serge, à arte versátil de Jane, à música com maiúscula. Bravo!

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