Queixas de violência policial na Cova da Moura: uma história antiga
“Ao pé de um polícia estamos inseguros”, diz mecânico de 55 anos que acusa polícias de agressões. Há várias queixas de violência policial contra esquadra de Alfragide com 18 agentes acusados de tortura e racismo.
Eliseu Cardoso tem o motor de um carro ligado. Interrompe o seu trabalho como mecânico para contar que foi lá, na Rua da Glória, Cova da Moura, que há mais de três anos perdeu “totalmente” a confiança na PSP. “Ao pé de um polícia estamos inseguros, pelo menos aqui no bairro”, afirma o mecânico de 55 anos no local onde diz ter sido agredido.
A relação entre a população do bairro da Cova da Moura e a polícia voltou ao debate. Esta semana o Ministério Público, num despacho histórico, acusou 18 agentes da PSP da esquadra de Alfragide de vários crimes como falsificação de documento agravada, denúncia caluniosa, falsidade de testemunho, tortura, entre outros crimes agravados por racismo que os agentes terão praticado contra seis jovens durante e depois da sua detenção no bairro a 5 de Fevereiro de 2015. Nunca, até agora, o Ministério Público se colocou de forma tão clara do lado dos moradores da Cova da Moura em casos de violência policial.
Esta mesma esquadra de Alfragide tem outros dois processos de investigação abertos pela Inspecção-Geral da Administração Interna, como revelou ao PÚBLICO na terça-feira a responsável Margarida Blasco. Mas apesar disso, e do despacho que “de forma inequívoca e sem sombra de dúvida” conclui que os factos descritos nos autos da polícia não se verificaram – ou seja, os polícias fabricaram os acontecimentos, acusa o MP – até agora a Direcção Nacional da PSP não disse quando irá suspender os agentes.
Formal e informalmente há várias queixas de moradores do bairro, nem todos jovens, contra aquela esquadra. Daquela experiência, inédita até então, Eliseu Cardoso lembra: “Nunca pensei. Confiava na polícia, hoje não confio.”
A 10 de Dezembro de 2013, eram cerca de 20h, apareceu a PSP junto à sua garagem. Eliseu tinha ido lavar as mãos, sujas do óleo do carro. Ouviu um burburinho. Saiu, perguntou: “O que se passa?”
"Só faz isso porque está fardado?”
Estavam a fazer a detenção de um jovem, que o mecânico viu cair na rua, seguido da queda de um agente. Diz que viu também o jovem ser pontapeado pelos agentes. “Porque é que estão a fazer isso? Só faz isso porque está fardado?”, perguntou a um dos polícias.
A partir daí iniciou-se um episódio de violência, descreve, e que ainda hoje deixou marca na sua perna. “Agrediram-me verbalmente e fisicamente.” Eliseu Cardoso virou-se de costas e voltou para dentro da garagem. De seguida, conta que levou com um cassetete na cabeça. Foi puxado para a rua e levado dentro da carrinha policial, onde ia também o polícia que o terá agredido. Seria conduzido para a esquadra de Alfragide.
Na esquadra, os agentes fizeram-no despir-se como “humilhação”, diz. Ficou com hematomas na cabeça, no corpo. Diz que o comandante o queria forçar a assinar um relatório onde estava escrito que tinha sido ele a agredir os polícias. Recusou fazê-lo: “Então eu sou vítima e passo a ser agressor?! Não assino nada.”
O depoimento com o relato do que aconteceu foi enviado ao Alto Comissariado da Imigração. Eliseu seria acusado de resistência e coacção física a agente da autoridade. O processo judicial ainda não está concluído. “Só vivendo. Não quero reviver aquilo. É uma mágoa tremenda”, diz. “Sou apenas um caso. Há ‘n’ casos que não são relatados porque não vale a pena”. Não tem dúvidas de que “foi racismo”. Os agentes diziam: “’Este país não é teu’, ‘já devias ter ido para a tua terra’, ‘macacos’”, recorda.
Entrar a bater
Há outros casos. Em 25 de Novembro do ano passado, durante a festa do dia de Santa Catarina, um homem foi agredido e relatou num depoimento, em que conta o episódio que passou com um amigo, recolhido pela Associação Moinho da Juventude (Prémio Direitos Humanos da Assembleia da República). “Não pediram a nossa identificação, nem nada, começaram logo a bater. Bateram-me na cabeça, umas quatro vezes”. Diz ainda que apanhou com um bastão perto do olho direito. “E depois já não me lembro de mais nada. Acordei no hospital Francisco Xavier”.
O relatório médico regista traumatismo craniano e hematomas. A mulher, empregada de limpeza no Instituto Camões, conta ao PÚBLICO que ainda hoje o marido ouve mal por causa de pontapés. Nunca antes tinha tido problemas com a polícia, garante.
Só em 2013 ocorreram vários casos que originaram queixas contra aquela esquadra. Em Março desse ano a associação decidiu escrever uma carta ao Ministério da Administração Interna, na altura conduzido pelo ministro Miguel Macedo, a manifestar "uma forte preocupação pela rápida escalada de episódios violentos no bairro", resultantes da "intervenção de algumas forças policiais" que, "longe de contribuir para uma melhoria das condições de segurança, tem vindo a assumir contornos cada vez mais provocatórios, intimidatórios e degradantes".
Meses depois, a 29 de Julho desse ano, três jovens que estavam a fazer música no estúdio da Moinho da Juventude foram detidos por agentes. Um dos jovens contou que tinha vindo à porta e depois de um curto diálogo foi agredido com uma bastonada, algemado, atirado para o chão e colocado na carrinha. “Um agente pegou-lhe ainda com força na cabeça e bateu sucessivamente com um joelho, em ambos os lados do rosto. Com o outro joelho, agrediu-o na zona do nariz”, descreve-se no relato. Ao ouvir os gritos, três amigos foram à porta e seriam igualmente algemados. Testemunhas da associação contam que seis polícias fizeram um perímetro, em frente de crianças, que “ficaram assustadas”, até porque se ouviram gritos.
Um dos jovens que conseguiu sair da esquadra, “cheio de dores”, contou que um agente dobrou e partiu o seu cartão de cidadão. Disse-lhe “que uma pessoa da cor dele não podia ser português”. “Os jovens foram ouvindo dos agentes afirmações como ‘vamos matar os pretos todos’, ‘odeio os pretos’, ‘a Cova da Moura vai abaixo’ ou ‘já tenho sangue de macaco na mão’”.
No relatório da associação lê-se: “Na esquadra, os agentes disseram que se tinham enganado, que a chamada que haviam recebido (de uma casa particular) tinha sido de um outro sítio”. O processo judicial foi arquivado por falta de provas e "incongruências".
Na Cova da Moura estes estão longe de ser casos isolados. Uma jurista, Susana Brito, foi pela primeira vez ao bairro em Maio de 2015 para visitar uma amiga. Pedindo orientações sobre onde era o bairro a dois agentes da PSP, teve uma resposta de “desfaçatez e desdém”. “A falta de profissionalismo, de formação e de compostura deste encontro, só possível com um ambiente favorável por parte das hierarquias imediatas, foi de tal ordem chocante que enviei um email ao Comando de Lisboa sugerindo formação a estes agentes, sob pena de instabilidade pública criada, ou pelo menos agravada, pela PSP”, lê-se numa carta que enviou mais tarde à IGAI, em Novembro.
A jurista é membro do Conselho Superior da Magistratura há um ano, e foi directora do Centro Jurídico da Presidência do Conselho de Ministros mas esclarece ao PÚBLICO que enviou a carta como cidadã. “Achei que os polícias precisavam de muita formação pois o comportamento deles, inadmissível, mostrou que não compreendiam o seu papel como agentes da autoridade”. Depois deste episódio, Susana Brito afirma que não se espanta que existam casos de violência policial como os relatados.
Apesar das diversas tentativas de contacto, o gabinete de comunicação da Direcção Nacional da PSP nunca atendeu o telefone. Também a IGAI não esclareceu em que fase estavam as queixas referidas. A IGAI arquivou sete das novas acusações que inicialmente tinha contra alguns dos 18 polícias agora acusados pelo MP. Quanto ao ACM, diz que não dá informação sobre queixas.
Esta quinta-feira, o director nacional da PSP, Luís Farinha, teceu uma critica à actuação dos agentes de Alfragide dizendo que os crimes foram praticados por quem não honra a profissão e mancham a instituição.