Nademos sem medo no mar dos Ermo
Esta é a história de uma banda que deixou de se reconhecer a si mesma. É a história de como os Ermo decidiram matar o passado para continuar a viver. É um álbum sobre nós, rodeados de sorrisos digitais cínicos e histerismo de redes sociais. Lo-Fi Moda é momento alto deste ano discográfico.
Novembro de 2015. Os Ermo voavam sobre o Atlântico. O destino era o Brasil e o festival DoSol. Que maravilha, certo? A banda nascida em Braga em 2011, tinham António Costa e Bernardo Barbosa 18 anos,ganhara relevo no panorama português com Vem Por Aqui, o álbum de estreia, muito elogiado pela crítica e que gerou culto entre o público. Eram, escrevia-se, música de intervenção feita de e para o século XXI. Era electrónica de paisagens sonoras densas e voz fazendo ecoar palavras fortes sobre fundo negro. Não vivíamos certamente no melhor dos mundos (ouviste Pangloss?) e sabíamos por onde não queríamos ir (adapte-se o F.M.I. de José Mário Branco e citemos José Régio – os Ermo fizeram ambas as cosias).
Passos seguros dados cá dentro, os Ermo partiam para se mostrar lá fora. Tudo corria melhor que o planeado, certo? Não. Tudo errado. Lo-Fi Moda, o álbum que editam agora, é consequência de uma banda que se descobriu estranha à música que fazia e precisou de andar a “bater com a cabeça na parede” para se reencontrar. Não são outros e, ouvindo-os, não são a negação do seu passado, mas são outra coisa. O impacto emocional e a carga dramática mantêm-se (está na natureza deles), mas manifesta-se de forma diferente. “É um álbum mais corporal, mais perceptível que inteligível”, ilustra Bernardo na esplanada lisboeta em que a banda conversa com o Ípsilon. “O que fazíamos antes concentrava-se na inteligência do que era dito e em determinada mensagem. Agora manifestamo-nos de uma forma mais material, mais concreta. Os sentidos são mais afectados que antes. Não pede que pensemos tanto, deixa que desfrutemos mais”.
Mudou o foco, mas os Ermo, apesar dessa fisicalidade mais evidente, do prazer sónico que as produções proporcionam, continuam a ser banda que vira um espelho sobre este tempo com “tão poucas palavras / tanta gente para as dizer” – é o que cantam em raicevic.als. Lo-Fi Moda é um disco de electrónica detalhada e retalhada para inspirar e colorir as palavras cantadas. Um álbum de pulsão urbana, onde agitação e euforia convivem com solidão e neurose, em que as luzes faiscantes dos néons brilham num momento para se apagarem no seguinte – e a escuridão que sobrevém pode ser refúgio salvador ou desespero que se acentua. São banda de canções sem refrões – mas conquistam-nos como se os tivessem – e de lírica hábil na forma como conjuga linguajar do dia-a-dia e imagens de forte ressonância poética, algo em que António Costa é exemplar pela intensidade que põe na interpretação, pela forma como canta das entranhas (basta ouvir Vem nadar ao mar que enterra, canção de abertura, para o comprovar).
Esconder para ver melhor
Portanto, víamo-los muito bem, muito claramente. Víamos o vocalista arrojado no chão, víamo-lo a dançar uma dança descoordenada, corpo balançando histriónico ao sabor das palavras. Ouvíamos o canto dramatizado que era como que um escarafunchar na ferida do que somos e do que fomos, nós, Portugal, testemunhávamos as provocações servidas sem paninhos quentes e aquele quase insuportável “fazer o que Deus quer” que fechava Recreio, a última canção do EP Amor x 4 (2015), criminosa batina lasciva cobrindo pureza infantil. Víamos muito bem o vocalista e o responsável pelas teclas e programações, António Costa o primeiro, Bernardo Barbosa o segundo, a criarem aquela electrónica soturna e reverberante pintada em pincelada arrastada ou com jorros de tinta atirados violentamente sobre a tela que a música pintava. Vimos e ouvimos (não podíamos ignorar).
Agora esconderam os rostos, dizem, para vermos mais claramente. Tocam cobertos com máscaras semelhantes às de um apicultor, rostos ocultados por uma rede – como poderemos ver este sábado, quando apresentarem o disco no Projéctil, em Braga. “Tanto no som, como no espectáculo, quisemos esconder a componente humana. A ideia é misturarmo-nos, confundir o público, que não sabe de onde vem o quê, quem escreve e quem produz. Somos dois Bernardos e dois Antónios”, diz o vocalista. Essa diluição da personalidade individual de cada um é determinante. Lo-Fi Moda é, afinal, sobre aquilo que somos hoje. Sobre a vida em rede, sobre a solidão disfarçada de comunidade nas redes sociais, sobre sorrisos digitais cínicos, sobre um egocentrismo sufocante e estupidificante que tudo parece contaminar. Sobre a extenuante energia posta em odiar - “emergi tão diferente / conspirando só para contrariar”, ouvimos em Fazer vudu; “estou tão farto do que odeio / às vezes anseio / deixar a vida a meio / meio vivo, meio cheio”, cantam, corrosivos, noutro momento.
A reflexão sobre a portugalidade de que Vem Por Aqui (2013), o álbum de estreia com Saramago, Pessoa, Camões, Amália, Salgueiro Maia ou Camões retratados na capa, foi inspirado testemunho, já foi posta para trás das costas. “Estamos a partir de dentro para fora”, ou seja, do individual que poderá tornar-se reflexo colectivo, “e não o contrário”, explicam. Guardado no passado fica também aquele tom primevo, matéria sonora arrancada a tempos longínquos que foi o primeiro passo, esse Bracara Augusta que, qual canto gregoriano profano e digital, incluíram na edição de 2012 de À Sombra de Deus, a histórica colectânea de bandas da sua cidade, Braga. Esqueçamos tudo isso e esqueçamos Amor x 4, que devia ser adenda a Vem Por Aqui mas que acabou editado longos dois anos depois, em 2015, quando o duo já sentia nova pele crescer-lhes no corpo. “Começas uma banda aos 16, 17 anos. De repente tens 22, 23 e já és muito diferente do ‘puto’ que fez o Vem Por Aqui e o EP. São anos de uma transformação gigante”. São. Lo-Fi Moda, o disco que acabam de editar, comprova-o.
Bater com a cabeça nas paredes
Quando deram por si no festival brasileiro recheado de bandas rock’n’roll com tudo muito bem estudado, sentiram-se “os gajos despidos e um bocado totós”, confessa António Costa. Foi em Natal que sentiram na pele, de forma mais evidente, o que já sentiam em Portugal. “Consideram-nos demasiado ‘live’ para tocar em clubes de electrónica e temos demasiada electrónica para sermos uma banda rock”. Sentiam-se, dizem, um patinho feio. Ou melhor, corrige António Costa, “o patinho mais feio, que patinhos feios há muitos”. Sem queixas, que se a ambição é chegar a algo que provoque e que marque pela diferença, então até recebem a classificação “com algum orgulho”, esclarece Bernardo.
O que sentiram no Brasil? Sentiram que “não tinham cumprido as expectativas”. Sentiram, de forma mais aguda, algo que crescia neles. “Estávamos a perder a corrida contra nós próprios. O nosso gosto musical estava a evoluir, mas a nossa produção musical não”. Perante isso, puseram tudo em causa. “Tínhamo-nos deixado ficar demasiado confortáveis e a surfar aquilo que acreditávamos ser o nosso sucesso”, diz António. “Teríamos sido mais duros connosco do que as pessoas foram na altura [da edição de Vem por Aqui]”, aponta Bernardo. “Lançar o disco e depois receber o respectivo feedback foi como ter montes de gente a pôr-te um espelho à frente. E não vimos aquilo de que gostamos, que estava noutro sítio qualquer.”
De regresso a casa, fecharam-se sobre si próprios, "a bater com a cabeça nas paredes oito horas por dia”, até encontrarem um fio condutor. Queriam “profissionalizar o som e dar uma injecção de maturidade à banda”. Em termos abstractos, procuravam um álbum em que cada canção tivesse a sua própria personalidade, mas em que todas soassem “irmãs”: “Sentir a luminosidade a entrar e a sair em cada faixa de forma diferente, com uma cor diferente”. Algo entre o groove quase Madchester de ctrl c ctrl v, o trabalho de tecelão digital hip hop em Circle J – da abstracção à luz –, a tropicália digital de Fazer vudu, o ambiente sombrio de raicevic.als, com saxofone a caminhar entre a batida lenta e os sintetizadores espectrais, ou o psicadelismo kosmische de Frito futuro.
São outros Ermo aqueles que vemos agora. Mataram o seu passado para poderem continuar a viver, mas continuamos a reconhecê-los. Olhamos os rostos escondidos que agora não vemos e sabemos que nos devolvem o olhar. Não precisam de “paleio para calar um beat chunga”, como dizem algures. “A verdade vem ao de cima”, cantam logo a seguir. Lo-Fi Moda é uma verdade inquestionável. Um momento alto deste ano discográfico.