O texto seguinte foi produzido por um dos participantes do segundo Workshop Crítica de Cinema realizado durante o 25.º Curtas Vila do Conde – Festival Internacional de Cinema. Este workshop é formado por um conjunto de masterclasses e debates com convidados internacionais e pela produção de textos críticos sobre os filmes exibidos durante o festival, que serão publicados, periodicamente, no site do PÚBLICO e no blogue do Curtas Vila do Conde.
O desejo sexual é um tema recorrente na obra de Yann Gonzalez. Não necessariamente a sua origem, ou o seu destinatário, mas uma visão pura e sem julgamento das atracções e obsessões que pautam a nossa existência. Em Les Îles (2017) entramos numa dimensão onírica, circular, labiríntica. Uma dimensão representativa de um subconsciente onde escondemos tudo aquilo que consideramos não ser aceite, carregada de uma sexualidade não normativa e que nos obriga a reflectir como gravitamos inevitavelmente em direcção uns aos outros.
O início romântico, íntimo, quase cândido, transforma-se inesperadamente numa situação aberrante que nos alerta para as camadas do filme. Por um lado, o trio de personagens representa diferentes facetas sexuais, culturais e sociais de cada um de nós – masculino, feminino e excêntrico; duas dimensões normativas para uma dimensão “bizarra”. Por outro, o sermos todos seres em constante estado de representação na relação com o(s) outro(s), conjugando desejos internos e expectativas externas.
Nesta dança entre id, ego e superego encontramos Simon, a protagonista, uma mulher transgénero, que se divide em todas as restantes personagens, representando diferentes dimensões de si mesma e dos vários papéis que assume. Destaca-se dessas Circé, representação do subconsciente de Simon, uma jovem voyeuse extremamente feminina que percorre um plano irreal, repleto de alusões sexuais e símbolos de fertilidade, espiando e invadindo a privacidade alheia. Circé representa duas vontades visíveis: o ser mulher em todo o seu esplendor e a necessidade de conexão e integração, atingindo o clímax ao ouvir Simon proferir uma promessa de amor a Nassim, concretizando esse mesmo desejo de ligação. Fortalecendo esta simbiose entre ambas, o único momento de fuga deste estado de fantasia é quando Circé sonha com Simon. Um pesadelo dentro de um sonho, que nos leva à realidade, em que Simon corre descalça, com ar transtornado, à luz do dia, fugindo das pressões e dos constrangimentos sociais que apagam o fulgor da fantasia. Simon quer tornar-se Circé, e Circé quer ser real como Simon. Desejo e realidade intercalam-se circularmente, já que uma não existe sem a outra.
Saímos de Les Îles com uma sensação agridoce, incertos sobre o que será real e o que será fantasia, comum a outros filmes de Yann Gonzalez. Inevitavelmente, estilhaça-nos preconceitos, confronta-nos com as nossas próprias fantasias reprimidas e sobre quem somos e o que desejamos quando estamos sozinhos.
Texto editado por Jorge Mourinha