Zadie Smith: o escritor é um adolescente a fazer perguntas óbvias
Há autobiografia em Swing Time. A mulher sem nome que narra o quinto romance de Zadie Smith é emocionalmente como ela, birracial como ela, nasceu na mesma cidade, mas vive outra realidade. Smith atreve-se a escrever na primeira pessoa, e nesse eu há o eco da autora a questionar o poder.
E se... O jogo literário começa sempre por explorar a possibilidade. Se não fosse escritora, Zadie Smith talvez tivesse sido bailarina ou cantora. Canta jazz, mas só para os amigos porque um dia decidiu que se não podia ser Aretha Franklin não seria ninguém no canto. Aos 41 anos, publica o quinto romance com o estatuto de estar entre os autores de língua inglesa mais prestigiados. Swing Time (Dom Quixote) é um ensaio literário sobre a actualidade a partir da relação entre duas amigas.
De um bairro pobre dos subúrbios de Londres à Nova Iorque da elite criativa ou ao desmontar dos clichés numa aldeia de África, Smith constrói uma narrativa sobre o poder centrada nos seus temas de eleição: raça, feminismo, classe. Numa conversa a partir de Londres, onde vive, conta como foi escrever pela primeira vez na primeira pessoa e nega qualquer pretensão de ser uma escritora activista. Isso, diz, seria perder a liberdade, a única coisa que a leva a escrever romance.
Parece um sentimento comum terminar este livro e senti-lo como uma metáfora deste tempo, um tempo no qual ocorrem perguntas de crianças como a da narradora perante o que via numa aldeia de África: “Que é isto? Que está a acontecer?” São perguntas inevitáveis?
Faço sempre esse tipo de perguntas, acho que são mais perguntas de adolescentes do que de crianças, coisas que os adolescentes acham ultrajantes, como profundas injustiças ou desigualdades. À medida que se cresce aprende-se a fechar os olhos, há uma espécie de cegueira. Penso no escritor como alguém preparado para ter o papel perpétuo de adolescente e perguntar o óbvio. O Louis C.K. tem uma piada – e acho que ele conta um episódio verdadeiro – sobre um primo dele que chega da província para o visitar em Manhattan, em 1986. Ele vai buscá-lo à Penn Station e logo ali vêem um sem-abrigo na estrada. O primo diz: “Oh, meu Deus, o que é que aconteceu àquele tipo? Porque é que ele está deitado no meio da rua?” E o Louis responde-lhe: “Oh… Nós costumamos fazer muito isso aqui.” Essa atitude perante o óbvio é uma reacção saudável.
Há muitas interrogações dessas a cruzar o livro, o confronto entre o que parece óbvio para uns e é chocante para outros, como o preço de uma refeição ou o papel atribuído a homens e mulheres. O que significa ser um cidadão moderno, esclarecido: a miscigenação, o multiculturalismo, a segregação, o sucesso? Está sempre a convocar o leitor para perspectivar. Não há conceitos suficientes ou ajustados para ajudar explicar o desajuste ou a tentativa de ajuste?
A partir do momento em que as pessoas têm acesso a aviões, barcos, comboios e se movimentam à volta do mundo, essa é uma situação com a qual nos temos de confrontar. Falar disso como uma ideologia é como se houvesse uma escolha. Como se a repatriação em massa fosse uma possibilidade quando as pessoas se movem mais ou menos livremente pelo planeta. Não acho que seja uma fantasia liberal. A questão prática é como podemos viver uns entre os outros. Não vejo isso como uma filosofia, mas como uma série de questões muito práticas acerca de uma realidade.
Costuma dizer que um livro é sempre uma visão sobre o mundo, neste caso, a sua visão sobre as várias relações de poder.
Sim, para mim o livro é sobre isso e, mais pessoalmente, uma espécie de despertar. Quando eu era mais jovem, mais ou menos quando escrevi Dentes Brancos [original de 2000, editado em Portugal pela D. Quixote], essa questão não me interessava, e, se pensava nela enquanto tema literário, nunca pensava duas vezes. Não a compreendia, simplesmente. Vou dar um exemplo estúpido: quando Game of Thrones começou, lembro-me de estar a ver a primeira temporada com o meu marido e aquilo era literalmente incompreensível para mim, não entendia qual o objectivo, qual a dinâmica da narrativa, pela mesma razão de que quando era criança não entendia Tolkien. Era como se fosse escrito numa língua diferente, porque não percebia porque é que toda a gente queria o anel. Mas nos últimos dez anos, acho que, como muitas pessoas, comecei a pensar de forma mais séria sobre o que é o poder, porque é que as pessoas o querem, qual a relação que estabelecem com ele e penso muito nele a partir da ideia de classe. É um modo de o fazer. Comecei a ficar cada vez mais curiosa sobre isso e o livro é o resultado dessa curiosidade.
A curiosidade que a leva a escrever um ensaio é diferente daquela com que parte para um romance?
É um pouco diferente. Nos ensaios tenho uma ideia da argumentação, mas por vezes de forma muito insegura. Preciso de perceber o que sinto. Parte desse processo tem que ver com treino universitário. Há uma base racional para um sentimento que tenho de justificar; ou então, se é um sentimento que não pode ser justificado, tenho de admitir isso. É ter um argumento racional mas reconhecer os elementos interpessoais que interferem no argumento. Quando escrevo um ensaio, tento pensar nestas duas coisas ao mesmo tempo e, quando termino, consigo uma certa dose de clareza, seja lá o que se chame a esse fim. Há uma espécie de conclusão, mas eu estou fora de cena. Há uma cena em Swing Time em que Aimee [uma das personagens] e a narradora estão a falar sobre apropriação e amor. Têm perspectivas diferentes. Como romancista posso ter essas diferentes posições em simultâneo, com toda a ambivalência, não tenho de decidir por uma. As personagens têm os seus sentimentos, estejam ou não em contraste. Isso é muito difícil na argumentação retórica, ou seja, na forma de ensaio. Claro que há ensaios fascinantes, como os de Montaigne, em que isso pode acontecer, em que ele é capaz de sustentar um argumento e manter a ambivalência. Mas é muito difícil manobrar a linguagem tendo o eu por limite.
Fala em eu, e este romance escreve pela primeira vez na primeira pessoa. Essa primeira pessoa é aqui uma voz a falar sozinha, num estado de solidão. Como chegou a ela, a esta mulher sem nome?
É verdade. Quis que se fosse uma primeira pessoa que estivesse sozinha, um pouco para perverter as narrativas clássicas escritas na primeira pessoa que dão ênfase à personalidade, como uma espécie de performance. Quis escrever num eu que estivesse vazio, como se não tivesse uma personalidade. Achei isso mais interessante. É uma espécie de eu no mundo, mas não alguém em particular. Queria olhar esse eu com essa clareza.
Esse eu é a narradora, uma mulher, birracial, a questionar-se sobre o seu lugar, o seu talento. Há nela alguma coisa de autobiográfico?
Há. É uma espécie de avatar. Tenho falado sobre isso com amigos. É como quando se está a actuar e se usa o próprio corpo como matéria-prima, e a voz e os maneirismos, mas sempre a dizer “como se”, “e se”. É como escrever uma história de vida, mas em que tudo é vida [gargalhada]. É biográfico no sentido em que me ponho nesse jogo de “e se”. Sempre gostei de cantar e de dançar, mas desisti muito cedo, e a minha vida tornou-se ler. Mas e se não tivesse sido assim? É a primeira questão. E se tivesse optado por outro tipo de media artístico de que gostasse e tivesse construído a minha vida à volta dele? Teria inevitavelmente falhado? E se eu não tivesse tido irmãos e se a minha mãe tivesse sido outra coisa? Uma série de questões. Estou sempre a fazer isso na ficção. É um exercício hipotético, um pouco divertido porque não é assim tão diferente de viver essa hipótese. Há um grande número de emoções envolvidas, mesmo que não as ponha em prática no mudo real.
No início do livro, a narradora diz: “Agora toda a gente sabe quem tu és realmente.” Como é que um escritor pode chegar à verdade de uma personagem?
É um tema que está a ser muito discutido. Estou a ler um livro de ensaios de Tom McCarthy, Typewriters, Bombs, Jellyfish: Essays, em que ele fala da personagem e estou muito interessada nos seus argumentos. Há qualquer coisa de instintivo sobre a história da personagem. Ele descreve sempre as personagens em termos de profundidade, uma espécie de exagero sentimental e neoliberal. Acho isso muito convincente e interessante, mas divirjo dele na assunção de que a personagem é sempre sobre profundidade, espécie de ideia metafísica de alma. Não vejo isso dessa maneira. Acho que a maior parte das vidas das pessoas é uma performance e as personagens, como as pessoas, estão a encenar a maior parte do tempo, e aquilo que realmente são, no sentido de que fala McCarthy, não é possível de conhecer, nem por elas, nem por mim como seu falso criador. Interessa-me mais a ideia de que as pessoas são atiradas para o mundo, para a existência, e têm de actuar, agir uma e outra vez, não segundo uma essência particular profunda, mas como reacção, e a personalidade, se quisermos, é a soma de todas essas acções. É nisso que estou interessada. A verdade da personagem, nesse sentido, parte de premissas com as quais não concordo como sendo prioritárias, de um sentimento de grandeza, de sublime, qualquer coisa humanista, de que as pessoas têm nobreza essencial. Nunca senti isso, nunca pensei isso.
A minha ideia das personagens é qualquer coisa muito mais empírica e a narradora de Swing Time é autobiográfica no sentido em que não me sinto como alguém em particular e acho que muita gente se sente como eu. Quando estamos a interagir, em relação com alguém, pessoalmente ou online, é possível sentir uma identidade distintiva, mas, se sou deixada sozinha mais de uma hora, em silêncio, sem um livro, uma televisão, um computador ou um telemóvel, quem sou eu? Quem somos nós? Acho que é muito mais isso. Não noto uma grande profundidade quando estou sozinha; noto uma espécie de cérebro de macaco, às voltas, a tentar encontrar alguma coisa em que me fixar para continuar viva.
É por isso que ao longo dos livros, e deste em particular, insiste em sublinhar as circunstâncias das personagens, a etnia, a classe, o sítio onde vivem?
Essas coisas são determinantes e fascinantes. Não significa que aprisionem, mas acho que senti que neste livro o que queria dizer sobre pessoas como Tracey é que a vida dela não é a tua vida, leitor. Estamos numa bolha tal, no nosso íntimo, no nosso narcisismo, na nossa própria existência no mundo, mas também na nossa classe, na nossa bolha cultural, que a vida das outras pessoas é profundamente misteriosa e estranha. É um mundo diferente ser eu ou um rei latino numa rua de Brooklyn, por exemplo. Cada circunstância da vida, cada pensamento é construído de uma forma condicionada pelo mundo à volta e estou mais interessada nisso, nessa alteridade, do que em dizer que os humanos são todos o mesmo. Não acho nada isso. O meio tem um papel extraordinariamente determinante.
A narradora diz: “Para mim Fred Astaire era a América.” É uma frase tão ingénua, dita por uma criança, como provocadora, e escrita por uma adulta num livro marcado pela questão da raça.
Quando eu era criança, Fred Astaire parecia-me tão moderno e tão livre. Ele dançou muito tempo em Inglaterra e a irmã dele tornou-se uma aristocrata inglesa ao casar-se com um tipo elegante com quem foi viver para um castelo numa ilha. Mas ver os filmes dele... Todos com um enredo europeu estúpido, em que toda a gente parecia estar à espera de dançar. E nessas histórias o Fred parecia livre, entrava como que a começar um novo projecto naquele ambiente. E era como eu via a América, um sítio onde se podia começar de novo a partir de uma Europa velha. Quando eu pensava em História, pensava na II Guerra Mundial e no Holocausto, como viver na sombra disso, e apercebia-me que tinha uma espécie de nostalgia pelos anos 60 e 70 americanos, com os seus movimentos libertários.
Era tudo muito pesado neste lado europeu, um silêncio sobre qualquer coisa e depois uma alegria desses movimentos com os quais aparentemente a minha geração não tinha nada que ver e que os nossos pais reclamavam como o tempo deles, de onde vinha a grande música e havia grandes roupas. Perante isso, nós éramos apenas nada, nuns anos 90 idiotas, em que não havia nada que se recomendasse; uns idiotas aborrecidos cheios de produtos industriais. Foi assim que senti esse tempo. Agora vejo que era incrivelmente ingénua. Muito do que está a acontecer agora foi alimentado nesse anos 90, uma época politicamente naïf, inconsciente, alheada. Não sei se foi assim em Portugal, mas foi em Inglaterra. Parecíamos estar no fim da história e tudo era puro entretenimento.
E agora surge um sentimento de nostalgia em relação a esse período, como a América parece nostálgica da sua grandeza dos anos 50.
Sim, temos uma nostalgia dos anos 90. Mas não é um pouco obsceno pensar que a nostalgia dos anos 90 que vejo em Inglaterra esqueça que nesse tempo de aparente paz e prosperidade houve extrema violência? Em todo o lado! Mas éramos muito bons a não olhar para ela, em não prestar atenção. Acho que a verdadeira nostalgia é essa, a de não saber; é uma nostalgia da nossa ignorância, realmente agradável, e que torna tudo aquilo em bons tempos.
Aimee, a superestrela para quem a narradora trabalha, diz: “Eu nunca peço desculpa por aquilo que quero! Mas vejo-te – e vejo que passas a vida a pedir desculpa! É como se sofresses da culpa do sobrevivente, ou coisa parecida! Mas já não estás em Bendigo. Deixaste Bendigo – verdade? Como Baldwin deixou Harlem. Como Dylan deixou… a porra do lugar onde nasceu.” Carrega-se demasiada culpa, pedem-se demasiadas desculpas?
Eu não concordo com Aimee. Eu acho que o tempo de um constante pedido desculpas não é um tempo assim tão terrível. Existe tanta violência no mundo que assumir que se é injustiçado pela sorte ou que se cometeu uma injustiça não é a pior coisa. É quase sempre verdade. Quando se diz, mais ou menos presunçosamente, “Sim, mas eu consegui vencer na vida, fiz o meu destino, esta casa que tenho fui eu quem a pagou”, isso revela, nem que seja muito superficialmente, que não é bem assim, que mais alguma coisa se passou ou se passa. Sim, pois, os teus pais deram-te metade do dinheiro, deram-te formação, pagaram a boa escola onde andaste, ou digamos que nada disto aconteceu e que os teus pais não te deram dinheiro, andaste numa escola péssima, mas talvez tenhas tido cuidados de saúde... Há sempre uma série de pessoas que estiveram envolvidas nas conquistas pessoais. Mesmo quando depende do exercício de talento, isso não faz de nós alguém particularmente maravilhoso por ter essa sorte, ser capaz de actuar muito bem num palco ou ler e escrever muito bem. Não é uma opinião muito popular, as pessoas gostam de merecer os seus dotes, mas eu tendo a assumir que a maior parte das coisas são acidentais – são sorte ou resultam da ajuda ou da contribuição de outros e o que temos realmente é muito pequeno; talvez o nosso corpo.
Em quem se inspirou para criar Aimee?
As pessoas vêem nela Angelina [Jolie] e Madonna, Victoria Beckham, pessoas que estamos sempre a ver. Há tantas... Oprah. É difícil encontrar uma estrela de Hollywood que não tenha tido uma escola em África. Há muitas inspirações, mas há sobretudo a minha ideia de diva. Adoro divas, gosto de todas as divas, Madonna, Judy Garland, Liza Minnelli... Gosto dessa identidade que algumas mulheres têm, sou atraída por elas, seja nas artes ou na amizade. Alguém que muito frequentemente aparece relacionada com o trágico. Acho-as fascinantes.
No livro escreve sobre o sentido do trágico como qualidade de um grande artista. Aimee tem esse sentido do trágico, como Tracey, mas a narradora sente-se muito longe dele.
Tracey não é famosa, mas tem um talento e é trágica à sua maneira – é viciada em drogas, e na sua cabeça é famosa. Aimee está noutro patamar, o lugar onde se é admirada por toda a gente. Parece-me um lugar solitário. E não estão lá só artistas. Essas pessoas são outra coisa, uma grande decoração para a vida, um acrescento de alegria, alguém que nos traz boas doses de alegria pelas quais me sinto grata. São como avatares, outra coisa que não as nossas ideias mais elevadas de arte. É como se pudéssemos viver através delas, conquistássemos um prazer precário através delas. Não queria viver ali, porque me parece extaordinariamente doloroso. Nunca tive ciúmes delas, nunca achei que fossem malvadas, sempe achei que havia uma dose de sacrifício naquilo. Acho que desistiram de um dos maiores tesouros da vida, a intimidade, como a Marilyn. Deram tudo a quem as viu e vê. Não me parece uma existência feliz. Muitas vezes é um sacrifício acidental, alguém que adora cantar e não imagina onde aquilo pode acabar.
Há quem olhe para si como uma diva, na literatura.
A escrita é um cenário diferente. Há muitas coisas com as quais nunca se tem de lidar. Não é preciso estar sempre na televisão, não se está sempre em público. É muito mais sossegado. Mesmo quando as pessoas me reconhecem na rua, é sempre no sentido de alguém que tem estado na nossa casa e fala na nossa cabeça. É muito mais íntimo. O meu irmão é um comediante famoso [Ben Bailey Smith, conhecido como Doc Brown] e vejo como as pessoas falam com ele; é uma relação completamente diferente, muito mais de tocar e ver se ele é real. Eu odiaria isso. Ele gosta.
Disse numa entrevista: "Estou sempre a pensar em deveres, direitos e dádivas.” Que significa isso?
Acho que a vida se distribui por essas categorias. Talvez se possam descrever os períodos históricos pela ênfase que dão a cada uma dessas categorias. Nas relações medievais em Inglaterra tudo eram deveres, não havia direitos, nem sequer direitos naturais. Havia o direito do rei, Deus deu-lhe esse direito. É óbvio que um mundo onde não há direitos e só deveres é um mundo terrível, mas também um mundo onde só existem direitos... Estou consciente de direitos essenciais, mas há muita gente que considera quase tudo direitos pessoais e aí é muito difícil viver, porque o direito de alguém tropeça no direito de outra pessoa. Penso nisto como num equilíbrio difícil. É preciso continuar a debater e a questionarmo-nos sobre isso e aí entra a ideia de dádiva. O que se chama "esquerda" e "direita" é sobretudo uma argumentação sobre dádiva, o que deve ser oferecido e o que deve ser ganho. Na esquerda, dependendo do grau, há a ideia de que há direitos naturais e que podem incluir educação, saúde, habitação… À direita há a noção de que não há coisas como direitos naturais, mas sorte e trabalho e, se te metes em sarilhos, tens de sair de lá.
Quando penso em política, penso em qual é a minha ideia sobre dádiva. Há pessoas que têm esse instinto sobre a dádiva muito exacerbado. Não é o meu caso. É o caso de Ben Carson [secretário para a Habitação da Administração Trump], cresceu num bairro complicado de habitação social, filho de uma mãe solteira com muitos filhos; ele saiu de lá e acredita piamente, de modo fundamental, que conseguiu tudo por si próprio e que todas as outras pessoas naqueles edifícios não tiveram a força de vontade. Esse sentimento pessoal forma-nos politicamente. Há pessoas que acham que não temos direito a nada a não ser o que somos capazes de conquistar e outras que acham que temos direito a tudo. Porquê?
Quando escreve sobre raça, sobre feminismo, sobre diferença de classes, nos romances ou nos ensaios, sobretudo, muita gente olha-a como escritora activista.
Não acho que seja, de todo. Susan Sontag era uma escritora activista. Dava conferências, fazia discursos, eu não tenho interesse nisso. Um activista precisa de pertencer a alguma coisa, a um colectivo, e eu não.
Mas expõe o seu modo de ver o mundo de uma maneira muito clara na literatura.
Sim, mas tenho de me sentir livre. Muitas das minhas queridas leitoras, mulheres negras, acham que pertenço ao seu clube, que devo escrever sobre certas coisas, mas não sou da equipa de ninguém. Escrevo sobre o que me interessa no momento e se tiver de pensar no que certo tipo de pessoas espera, então não sou capaz de escrever, fico desasada, consciente acerca do livro que estou a escrever. Só consigo seguir os meus interesses e espero sempre que haja um leitor a quem aquilo interesse, seja alguém que goste de romances do século XIX, seja uma mulher negra de Boston. Preciso desse leitor e espero sempre que ele exista. Escrevo a frase que me parece natural e lógica na progressão daquele momento particular. Para isso é preciso sentir-me livre.
Quando escolhe escrever sobre a amizade de duas raparigas birraciais para contar uma história que não é apenas sobre isso, há sempre muito presente o tal jogo de poder.
Acho que a amizade é sobretudo isso, um jogo de poder, e há quem finja que não é duro e nem pouco cansativo. Muitas vezes não apresento as mulheres do modo como elas gostam de ser apresentadas. Mas como artista tenho de fazer essa escolha e é uma escolha independente.
Começámos a falar da primeira pessoa, do eu. No livro é um eu adulto que vamos conhecendo através de recuos no tempo até à infância, e outra vez até a um tempo mais próximo do presente do livro. Sempre assim. E vemos a criança a confrontar-se com a palavra "nós", referente a um colectivo que exclui a individualidade e outros colectivos. Ela pergunta: “Quem somos nós?”
Podemos fazer parte de muitos “nós”. Acho tão difícil ser inteiramente definido por grupos, por colectivos. Admiro pessoas que conseguem e se sentem bem nessa descrição política de si mesmas, mas não ganho nada em me descrever de forma muito precisa. Sempre resisti à ideia de orgulho, o orgulho da pertença. Quando digo que sou uma mulher, britânica, negra, não digo que me orgulho de ser este tipo de pessoa. Mas posso trazer o amor para aqui e dizer que gosto de ser isto, mas talvez também gostasse de ser outras coisas. Sejamos quem formos, somos capazes de encontrar uma razão para gostarmos de ser isso. Mas orgulho... Entendo o sentimento de um orgulho colectivo, no nosso povo, no nosso país, mas não tenho esse sentimento.
Quando terminou este livro, no final do ano passado, escreveu um ensaio sobre dança que já é famoso, onde compara dança com a escrita.
Pois foi. Escrevi esse texto de forma muito instintiva, sobre a minha busca de uma linguagem particular para falar de dança. É uma linguagem que recai inteiramente na experiência de um dom. Quando vejo os movimentos de Prince ou de Michael Jackson, não tenho maneira de escrever sobre eles de forma objectiva. O que sei dizer é que, quando os vejo dançar, sinto isto, e é uma emoção única e também partilhada. Tudo vive e morre nisso, nesse sentimento. Ao escrever aquela peça, tentei perceber que todas as formas de arte são reservatórios, formas de sensibilidade. Martha Graham [coreógrafa] fez talvez a melhor e mais útil descrição que já li sobre o que é a arte. Não é dizer que você é uma mulher especial e maravilhosa e deve expressar o seu talento. Ela diz que há uma energia, que as pessoas têm diferentes energias e podemos sentir isso; têm maneiras diferentes de estar no mundo e esse modo é único. Não é uma coisa mágica, acontece ser única, como a impressão digital, e a arte é o modo de criar uma forma para essa sensibilidade, para que ela possa ser repetida no mundo, independente de quem a originou. A dança faz isso de modo muito puro, porque não há um medium secundário, é o eu a expressar-se directamente. O canto faz isso também, não a canção, não as palavras, mas a voz, o modo como Aretha Franklin grita é que faz o génio, a coisa estranha que ela é capaz de criar. A ideia de cantar e gritar e ser jubilosa em simultâneo, numa nota. A arte é forma de tornar objectivo, dar forma a esse modo de ser. A escrita é um pouco isso. Quando se conhece um escritor, ele é como a sua escrita. A questão aqui é o que significa “ser como”. Não é achar que fala de acordo com as frases do seu livro, mas é a impressão que se tem em frente de um escritor, muitas vezes a mesma que se tem da página que escreve. Isso só não é verdade com os escritores impostores, mas esse é um caso diferente. Detesto a escrita impostora. A sensibilidade é uma coisa e a escrita impostora é outra, uma escrita em que a frase e as emoções são impostoras.
O livro está feito. Está a escrever outro?
Não, tenho uma visão muito infantil do Verão e não trabalho, há o ciclo académico na minha cabeça. Recomeço em Setembro. O Verão é o Verão. Acho que as escritoras com filhos ou vivem frustradas ou submetem-se. Eu escolho submeter-me. Eles não têm escola agora e eu levo-os ao ginásio e ao jardim.