Cartas trocadas entre Agatha Christie e o editor mostram “mau génio” da escritora
A correspondência revelada será exibida no Theakston Old Peculier Crime Writing Festival a partir de 20 de Julho e serve para assinalar o bicentenário da HarperCollins, editora da "rainha da novela policial".
Agatha Christie é uma das mais prolíferas autoras da literatura mundial, segurando ainda hoje o título de escritora mais rentável de todos os tempos no Guinness World of Records. Mas o percurso de sucesso da “rainha da novela policial” não foi livre de solavancos com a sua editora. Para celebrar os 200 anos da HarperCollins, foi revelada pela primeira vez a correspondência trocada entre Agatha Christie e o editor Billy Collins, que será exibida no Theakston Old Peculier Crime Writing Festival entre 20 e 23 de Julho. “Tenho recebido várias cartas de diferentes leitores que se mostram surpresos por eu ser ‘uma senhora tão velha’”, escreveu a autora em Outubro de 1949.
Então com 59 anos, a escritora mostrou-se particularmente desagradada com um comentário de Bertie Meyer, um produtor de teatro que se preparava para levar a palco uma adaptação de Crime no Vicariato. “Francamente, Agatha”, retorquira Billly Collins após ver a última imagem da autora divulgada publicamente, “aquela fotografia dá-lhe cerca de 70 anos”. Christie rapidamente contra-argumentou. “Ninguém gosta [das fotografias], possivelmente, talvez, porque não parecem ter sido de todo retocadas? Todas as linhas e rugas – e pare com isso, não tenho 70 anos – nem sequer cheguei aos 60.”
Agatha Christie já havia começado a deixar o seu cunho no género policial, com a criação do icónico detective Hercule Poirot, mas fazia questão de estar envolvida em cada etapa do processo de edição e publicação de todos os seus livros. No final dos anos 1940, a imagem de um pequinês com uma expressão feroz na sobrecapa de Os Trabalhos de Hércules gerou algumas gargalhadas no lar dos Christie. “O design do papel que envolve Hércules desencadeou os comentários e sugestões mais obscenos e grosseiros por parte da minha família – Só vos digo isto: tentem outra vez”, queixou-se a escritora numa carta datada de 9 de Abril de 1947. A autora foi intransigente, mas a figura em questão voltou a surgir numa edição recente de capa dura. Em Junho de 1974, Agatha Christie continuava a pedir ajustes ao grafismo dos seus livros, nesta altura devido a uma imagem de Os Primeiros Casos de Poirot, em que o mítico detective “parecia que estava vestido a rigor para ir a um funeral”.
A escritora mantinha uma boa relação com o seu editor, mas a correspondência reflecte a sua frustração pontual quando se sentia posta de parte nas grandes decisões do mercado livreiro. Em 1967, viu o seu mais recente trabalho nas prateleiras das livrarias antes de lhe ser comunicada a data de publicação ou de ter recebido alguns exemplares em antecipação. “Normalmente, o livro [é publicado] em Novembro e dá muito jeito para enviar aos amigos [como prenda de] Natal – mas agora é meio impossível fazê-lo, não?”, ironizou Christie. “Acho vergonhosa a forma como estão a tratar os vossos autores."
Jardineiros e bolas de ténis
Apesar de sempre ter tomado as rédeas do seu próprio trabalho, eram raras as brigas entre Agatha Christie e Billy Collins. A "rainha do policial", que Collins apresentara à editora em 1924, viria a tornar-se a sua agenciada mais rentável. Os dois corresponderam-se até à morte da escritora, em Janeiro de 1976, resultado de uma relação profissional e cordial que acabou por desembocar numa amizade também espelhada nas cartas. Em Setembro de 1940, Collins pergunta à autora se poderá ficar com o seu jardineiro, Midgley, já que a sua esposa “andava desleixada há algum tempo” e queria uma mudança de ambiente. Mais tarde, Christie virá a pedir a Collins – cujo irmão era um famoso jogador de ténis – para lhe arranjar bolas de ténis através dos seus contactos em Wimbledon, já que durante a guerra elas eram difíceis de encontrar.
A gratidão de Billy Collins pelo estrelato da escritora era de tal forma significativa que lhe comprou um carro em 1953. “Era um Humber Super Snipe”, conta David Brawn, responsável pelo espólio de Christie na HarperCollins, citado pelo diário britânico The Guardian. “Ele queria comprar-lhe um Jaguar porque era mais divertido, mas ela disse que era demasiado velha para a diversão."
Esta não é a primeira vez que as cartas enviadas por Agatha Christie permitem reunir mais uma peça do puzzle que foi a sua vida. Em 2012, a HarperCollins lançou The Grand Tour, uma colecção de cartas e fotografias que a escritora enviou à mãe enquanto viajava por vários países. Em 2015, para assinalar os 125 anos do nascimento da escritora britânica, o neto Matthew Prichard reuniu e publicou algumas cartas enviadas por leitores à avó nos anos 1950 e 1960. Uma mulher polaca contava como os mistérios de Christie a tinham ajudado a sobreviver a um campo de trabalhos forçados na Alemanha. “Faltavam as primeiras páginas, por isso não sabia o título nem o autor, mas durante sete meses foi a minha única ligação ao mundo real."
A exposição segue depois para Greenways, a antiga casa da escritora em Devon, e mostra fotografias inéditas das escavações arqueológicas da escritora e cartas dos seus leitores mais famosos, como o antigo primeiro-ministro britânico Clement Attlee, do Partido Trabalhista. A celebração do bicentenário da HarperCollins continuará ao longo do ano e, para isso, foi criado também um site interactivo que se divide em cinco secções: The HarperCollins 200, que inclui uma selecção de 200 dos seus mais icónicos títulos como Moby Dick, de Herman Melville e O leão, a feiticeira e o guarda roupa, de C. S. Lewis; Timeline e Stories, que permitem através de uma cronologia e de imagens viajar pela história de uma editora que hoje opera em 18 países; Inside the Archives, onde pode ser vista uma série de objectos como notas originais dos autores, e Why I Read, que agrega as respostas dos autores à pergunta-título.
A HarperCollins é a casa de autores como John F. Kennedy, Harper Lee, Mark Twain, J. R. R. Tolkien, Neil Gaiman ou Veronica Roth.