Huntington: a "doença da vergonha" que devasta gerações inteiras

Associação Portuguesa de Doentes de Huntington entrega nesta segunda-feira uma petição no Parlamento para tornar conhecida uma doença "traiçoeira". Tem origem genética. Não tem cura.

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Francisco Mendia, Helena Soares e Maria do Carmo Milagre Daniel Rocha
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Daniel Rocha

Foram necessários muitos anos para Maria do Carmo Milagre conseguir juntar as peças do puzzle da sua vida. Lembra-se dos tiques e comportamentos estranhos do sogro. Comportamentos que se exacerbaram no seu primeiro marido, de quem se separou por violência doméstica, já depois de terem tido uma filha. Quando a filha tinha perto de 20 anos, começaram uma vez mais as atitudes estranhas e “uma saída extemporânea de casa”. “A minha filha rapava o cabelo e atirava-o para a roupa dos vizinhos, não tinha filtro no que dizia ou fazia. Suicidou-se.” Aquilo que aos olhos dos vizinhos era uma rebeldia acabou por ter um outro nome: Doença de Huntington, uma patologia com origem genética e sem cura, que pode levar a alterações motoras, comportamentais e cognitivas.

A presidente da Associação Portuguesa de Doentes de Huntington, Helena Soares, sublinha que esta é “uma doença degenerativa do cérebro devastadora e que afecta gerações inteiras”. Quando um dos pais tem esta mutação genética, a probabilidade do filho herdar este problema é de 50% — mas já é possível fazer um diagnóstico genético através de técnicas de procriação medicamente assistida, para que os bebés nasçam livres do problema.

Não há números oficiais. As estimativas da associação indicam que podemos ter cerca de 8000 doentes ou pessoas em risco de desenvolver a doença em Portugal. Por isso defende a criação de um espaço próprio, com centro de dia e internamento, para dar resposta adequada a esta patologia.

Para tornar mais conhecida a “doença da vergonha”, como lhe chamam — por ninguém querer contar que a tem —, Helena Soares preparou uma petição com a ajuda de Maria do Carmo Milagre e de Francisco Mendia, consultor de comunicação e também ele livre da doença, mas de uma família com trisavó, avô, mãe, tios e primos afectados. O documento será entregue nesta segunda-feira no Parlamento, onde serão recebidos pelo vice-presidente, Jorge Lacão.

Dos tiques à violência

A doença é “traiçoeira”, diz Helena Soares. Não há um padrão definido que permita ter a certeza dos primeiros sintomas ou idades em que surgem, já que tudo depende também da zona cerebral que está a ser afectada. À associação chegam casos de todos os géneros e idades, com sintomas que podem começar numa depressão e isolamento e ir até surtos psicóticos, situações violentas com recurso a armas, como facas, atitudes compulsivas perante a comida ou compras exageradas. “São pessoas que raramente conseguem manter os empregos e mesmo a família afasta-se”, lamenta Helena. Os tiques involuntários são o sintoma mais comum.

O usual é a doença manifestar-se entre os 40/50 anos e a esperança média de vida não costuma ir além dos 15 anos — as quedas relacionadas com o desequilíbrio, os engasgamentos e as pneumonias por aspiração são as principais causas de morte, uma vez que a doença afecta a capacidade dos doentes cumprirem funções básicas como comer.

A filha de Maria do Carmo Milagre ainda lhe chegou a dar uma neta antes de saber que tinha. O diagnóstico só apareceu aos 27 anos, aos 32 matou-se, “depois de ter pedido repetidamente para ser eutanasiada noutro país”.

Maria do Carmo é agora cuidadora da neta Sara, mais um exemplo de como a doença pode ser sinuosa. Tem apenas 16 anos mas “já tem muitos sintomas”. Nestas idades é raro haver manifestações e quando começam cedo o prognóstico é pior. “O estigma é enorme. Ela diz que tem uma doença rara mas os amigos não acreditam e afastam-se.”

“Rios no cérebro”

Apesar de saber os anos difíceis que terá como cuidadora, Maria do Carmo sente que o melhor que pode fazer pela filha e pela neta é ajudar a divulgar esta doença que define como “algo que agasta os neurónios e cria rios no cérebro, afectando todas as funções e músculos”. Muitas vezes os doentes acabam “numa cama como vegetais”.

Helena tem também ela uma história familiar com o pai, o avô, tio, tia e prima afectados e já mortos. Ganhou o seu euromilhões no dia em que fez um teste genético que lhe permitiu saber que está livre da doença. “Fui comer uma mariscada para celebrar.” No entanto, perante a ausência de cura, “muitas pessoas não querem fazer o teste genético porque acompanharam o sofrimento de familiares e preferem não sofrer antecipadamente”.

Mesmo com um diagnóstico atempado, não há nada que se possa fazer, “a não ser controlar alguns dos sintomas motores e psiquiátricos”, reconhece a neurologista Cristina Costa, médica no Hospital Fernando da Fonseca (Amadora-Sintra) e responsável pela Consulta de Doenças Hereditárias do Sistema Nervoso.

Em linhas simples, diz a médica, estes doentes têm mais repetições de um determinado gene do que o que seria suposto e esse gene produz uma proteína que degrada progressivamente o funcionamento do cérebro. Até determinado número de repetições a pessoa não desenvolve a doença mas passa-a na mesma para os filhos, a partir de certo valor o desfecho negativo é certo. A manifestação mais fácil de identificar são os tiques.

Queimados na fogueira

Os promotores da petição que será entregue nesta segunda-feira já foram ouvidos por alguns grupos parlamentares. A petição conta com assinaturas como a do cardeal patriarca de Lisboa, do bastonário da Ordem dos Advogados e do vereador lisboeta José Sá Fernandes.

O objectivo é ver discutida em plenário a criação do dia 15 de Junho como Dia da Doença de Huntington – numa data que coincide com o dia de São Vito, o padroeiro das doenças do movimento e “também ele queimado numa fogueira, como costumava acontecer a estes doentes”, recorda Helena.

Cristina Costa acompanha a preocupação de Helena Soares e destaca que é fundamental divulgar esta doença e identificar os doentes. Porquê, se não há resposta? A médica lembra que há sintomas que os clínicos podem ajudar a controlar e que, existindo uma boa base de dados, é mais fácil incluir estes doentes em eventuais ensaios clínicos que prometam uma resposta a esta doença. Um dos seus trabalhos é encaminhar as pessoas para o “protocolo de diagnóstico preditivo” – ou seja, a análise genética que confirma se a pessoa tem ou não a repetição excessiva deste gene. “Mesmo sem consulta marcada mantenho sempre a porta aberta para doentes e familiares, o mais importante é saberem que têm com quem conversar e tomar decisões informadas.”

Mas a neurologista alerta que “sendo esta uma doença da família e com uma carga tão pesada” este diagnóstico segue um protocolo internacional. “Há várias consultas e primeiro é avaliada a capacidade psicológica de uma pessoa ter um diagnóstico destes.” Muitos doentes nunca chegam a levantar o resultado do exame. A especialista reforça que compreende “qualquer decisão pessoal”, mas reitera que o papel dos médicos “é ajudar a acabar com a doença das famílias”, o que pode ser feito com uma aposta no planeamento familiar. Para quem já teve filhos, pode ser importante tirar a dúvida se o progenitor tem ou não alteração. “Chegam-me filhos com pais que nunca quiseram fazer o teste e que vêm de famílias com muitos casos. Se esses pais fizerem o teste ajudam na resposta aos filhos.”

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