O desemprego eclesial dos cristãos
A Igreja, hoje, conta com competências em todos os ramos de vida humana e de inteligência da fé, que precisam de ser activadas.
1. No passado dia 29 de Junho, foi apresentada, no Convento de S. Domingos (Lisboa), a Obra Seleta do dominicano José Augusto Mourão — O Vento e o Fogo; A Palavra e o Sopro; O Espelho e o Eco [1] —, coordenada por J. Eduardo Franco. Desta selecção resultou um volume de 1590 páginas, primorosamente editado pela Imprensa Nacional, que mostra a abrangência polifacetada e original da sua escrita.
Trata-se de uma realização singular da interacção do trabalho académico e da intervenção cultural, fora dos espaços confessionais, em ligação com a tarefa de alterar as rotinas instaladas, em nome de uma falsa ortodoxia, no campo litúrgico e teológico. O seu empreendimento, na adaptação e criação de expressões poéticas e musicais para as celebrações da fé cristã, resulta de um profundo conhecimento das respectivas tradições orientais e ocidentais. Não se confunde com a ignorância atrevida, nem com o falso respeito do que sempre assim foi e porque sim! Nele, a tradição provocava constantes inovações. A fé era recebida como “alteração alterante”. Confessa num poema musicado da juventude: “Creio em Ti porque isso mudou a minha vida.” Fez, numa entrevista, a sua apresentação: “Sou dominicano, antes de mais. Sou professor universitário, a seguir. Ensino Semiótica e Hiperficção e Cultura, na Universidade Nova de Lisboa. Sou também presidente do Instituto S. Tomás de Aquino. Mas sou fundamentalmente um leitor que ensina, que investiga e que escreve.”
Ao responder à pergunta sobre o que o levou a escrever livros, foi muito directo: “A Academia avalia, e um dos critérios da avaliação é o que se produz em termos de ensaios, conferências, participação em congressos. Escrever, neste caso, é uma obrigação profissional. Escrever textos sobre Deus decorre do meu próprio estatuto de ‘teólogo’. Tenho uma licenciatura canónica em teologia, antes de mais. Escrevi textos sobre ‘A enunciação poética de Deus’, por exemplo, mas muitos outros sobre ‘Liturgia e estética’, ‘O espaço dos mosteiros’, por exemplo.” Como dizia António Machado, a alma do poeta orienta-se para o mistério.
J. A. Mourão escrevia em resposta “a um sopro, a um Dito, a um apelo. Distingue poesia (em absoluto) e ‘textos para rezar’, que são textos de circunstância, utilizados em ambiente litúrgico”.
Sobre o papel da Sagrada Escritura no seu trabalho, como escritor, é luminoso: “A Palavra de Deus é primeira em relação à palavra que trocamos entre nós: não dispomos dela. Não há cristão que não obedeça à Palavra. Não como enunciado morto, mas como provocação, interacção. A Palavra não é monolítica, mas multidiversa: é cada um que, ao recebê-la, a ‘aplica’ a si e ao mundo em que vive. Não escrevo a partir da ‘angústia da influência’, mas da liberdade dos filhos que entre si partilham o que lhes é comum. A Palavra dissemina-se em nós como um campo que Deus trabalha.”
A poesia não procura efeitos práticos: “O poeta escreve por escrever. Como a rosa é sem porquê. Não sou um escritor militantemente cristão. Testemunho no dom que recebi de dar à Palavra um lugar alto, não rotineiro, não vulgar. Nem romano. No caso dos textos para rezar, se os escrevo é para os rezar com. Não é viver, viver com?” [2]
Conheci este poeta em Vila Real, onde fui pregar, em 1962, durante oito dias, na Sé, Igreja de um antigo convento da Ordem dos Pregadores. Ainda seminarista, convidou-me para uma palestra na Academia Missionária. Passou depois pelo Seminário do Porto. Incómodo para o Bispo de Vila Real, foi convidado como missionário leigo pelo Bispo de Nampula, D. Manuel Vieira Pinto. Passados dois anos foi recambiado para Portugal pela PIDE, ao ver que ele não se resignava à situação maltratada da população africana.
No Porto, sentiu-se reconhecido por frei Bernardo Domingues e por Frei Mateus Peres. Foi estudar para Toulouse, Lyon e Paris. Fui pregar à sua Missa Nova. Morreu em 2011.
2. O acontecimento marcante na reforma da Cúria Romana foi a não recondução do Cardeal Müller, como Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Quem andar alheado das movimentações vaticanas reagirá de forma muito displicente: rei morto, rei posto. Desaparece um, vem outro. Não há vazio de poder. Isto significa que ainda não se compreendeu o desígnio do Papa Francisco.
Não tenho de pôr as mãos no lume pelo novo Prefeito, o bispo Ladaria, com uma carreira que tem todas as marcas de um homem do sistema.
O Papa Francisco nunca atribuiu qualquer infabilidade às suas opções. Se as faz, é para realizar um programa que apresentou, de forma clara, a toda a Igreja. Manter, como Prefeito, o cardeal G. Müller — nomeado por Bento XVI — seria mostrar que, para não ferir susceptibilidades, renunciava às reformas que prometeu. Não esperem isso de Bergoglio. Era inteiramente inaceitável que o Prefeito se servisse do seu cargo para desautorizar, sistematicamente, de forma directa ou enviesada, os caminhos do Papa Francisco. Mostrou-se, no mínimo, um funcionário sem ética profissional. A decisão só peca por tardia. É lamentável que não tivesse tido a hombridade de se demitir.
3. Confesso que não acredito nessa Congregação, herdeira do Santo Ofício. Durante o longo mandato do Cardeal Ratzinger, manifestou-se, em nome de Deus, uma instituição esterilizante do pensamento livre na Igreja. Terá de ser substituída por uma instância que estimule a criatividade cultural da fé cristã, em diálogo com as expressões do pensamento laico e inter-religioso. A fé católica dá muito que pensar e realizar como liturgia, estética e ética no respeito e apreço pela investigação científica. Tem de ser uma fé em processo permanente de inculturação. Isto não significa que vale tudo. Significa que os cristãos têm de desenvolver uma atitude de mútua escuta e mútua interpelação. A Igreja, hoje, conta, a nível local e global, com competências em todos os ramos de vida humana e de inteligência da fé, que precisam de ser activadas.
É lamentável o desemprego eclesial dos cristãos, mulheres e homens.
[1] Direcção e coordenação de José Eduardo Franco, Imprensa Nacional, 2017
[2] Ib., p.1589-1590. O sublinhado é meu. Numa entrevista a Maria João Seixas, que também figura neste volume, explicita as opções do seu itinerário, como cidadão, como investigador e professor, como dominicano com responsabilidades no interior da Ordem dos Pregadores, sem confundir ou anular nenhuma destas dimensões, potenciavam-se umas às outras (cf. pp.1577-1587)