Finda a batalha por Mossul, a guerra pelo futuro do Iraque intensifica-se

O modelo federal arquitectado pela ocupação americana, sob a base de uma partilha de poder entre sunitas, xiitas e curdos, colapsou e sem um inimigo único a violência sectária ameaça reacender-se.

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Soldados celebram a conquista de Mossul aos jihadistas Alaa Al-Marjani/Reuters

A campanha para reconquistar Mossul ao Daesh chegou ao fim, mas a batalha pelo futuro do Iraque está longe de ter terminado. E para o país, a vitória pode tornar-se um problema tão grande como a derrota.

O modelo federal arquitectado pela ocupação americana, sob a base de uma partilha de poder entre sunitas, xiitas e curdos, colapsou sob o peso da violência sectária que acabaria por abrir caminho aos percursores do Daesh. Nos últimos três anos, a luta contra os jihadistas tornou-se no ponto unificador de um Iraque fracturado. Mas com a vitória essa unidade começa a desaparecer.

Um dos desafios é o futuro da própria cidade, traumatizada pela brutalidade dos jihadistas e devastada pela ofensiva, que provocou milhares de mortos e quase um milhão de deslocados.

Responsáveis ocidentais, iraquianos e curdos dizem-se perplexos com a negligência das autoridades iraquianas na elaboração de um plano para assegurar a governação e a segurança em Mossul após a batalha. O comité que integrava responsáveis curdos, o governo de Bagdad e representantes da coligação americana para ajudar os líderes locais a reconstruir a cidade nunca chegou a reunir-se.

“O primeiro-ministro Haider al-Abadi andou a arrastar os pés. De cada vez que levantávamos a questão ele dizia, ‘vamos esperar pelo fim das operações'”, explica Hoshyar Zebari, um antigo ministro das Finanças e dos Negócios Estrangeiros. “Uma cidade inteira foi dizimada. Mas o Governo parece que não quer saber.”

Curdos e xiitas

O primeiro sinal de um possível futuro conflito foi dado quando Masoud Barzani, o presidente do Curdistão autónomo iraquiano, anunciou um referendo à criação de um Estado independente para 25 de Setembro. Barzani disse à Reuters que a data é “flexível, mas não o será indefinidamente”. Há quem acredite que o real objectivo desta consulta não é a independência, mas dar força às reivindicações curdas sobre os territórios disputados, tal como a região rica em petróleo que rodeia a cidade de Kirkuk.

Zebari, dirigente do partido de Barzani que há uma década se dedica em Bagdad a fazer funcionar o sistema de partilha de poder, afirma, no entanto, que este é o momento certo para a independência curda. “Perdemos a esperança e a fé no novo Iraque que construímos. O governo falhou em cada uma das provisões da Constituição que garantia cidadania igual para todos, sem discriminação”, diz.

Outra fonte de preocupação são as movimentações das milícias xiitas das Unidades de Protecção Popular, que actuam sob a bandeira de Bagdad, mas são apoiadas pelo Irão. Têm avançado em direcção à fronteira com a Síria passadno junto às áreas controladas pelos curdos, motivadas pelo claro desejo iraniano de criar um corredor que ligue Teerão (a Leste) directamente a Beirute (Oeste). “Eles estão em cima de nós ao longo de toda a fronteira curda, de Sinjar (Oeste) a Khanaqin (junto ao Irão) e até agora temos estado a observar pacientemente, coordenando-nos para evitar escaramuças, mas a tensão está a aumentar”, diz Zebari.

Estas movimentações têm como pano de fundo as crescentes rivalidades entre as potências regionais e, acima delas, a perda de influência dos EUA, num momento em que o Irão se empenha em consolidar o seu controlo sob o Iraque. Enquanto a Administração norte-americana de Donald Trump olhar para a região unicamente como o palco da sua batalha para destruir o Daesh, os jihadistas vão limitar-se a desaparecer entre a população, tentando reagrupar-se numa nova insurreição. E tanto os líderes sunitas como curdos na região que rodeia Mossul estão alarmados com a falta de planos do Governo para o futuro da cidade, dizendo suspeitar que é o Irão quem está ao comando.

Autonomia para Mossul

As zonas disputadas por todos estendem-se ao longo de uma faixa de território multiétnica que separa o Curdistão da zona de maioria árabe mais a Sul – na verdade mais um campo minado do que um mosaico.

“Regressámos onde estávamos antes de Mossul ter caído, porque há esta ideia da linha dura da liderança xiita de manter as zonas libertadas sem liderança política ou organizações de segurança, a fim de as poderem controlar”, diz Atheel al-Nujaifi, que era governador da província de Níneve em 2014 quando Mossul foi tomada pelos jihadistas.

Os líderes moderados xiitas, incluindo Abadi, receiam a lógica em que o vencedor ganha tudo, temendo “o renascimento do radicalismo [sunita] que eles sabem que pode destruir não só o Iraque, como os xiitas”, explica o antigo responsável, de etnia sunita. O problema, acrescenta, é que os xiitas iraquianos estão divididos, o que permite a Teerão controlar todas as facções.

A sugestão de uma secessão curda levou alguns sunitas iraquianos a discutir a criação de um estado próprio, mas a maioria dos dirigentes acredita que não se trata de uma solução prática – os territórios em que são maioritários não têm as reservas petrolíferas existentes no Sul xiita ou nas áreas curdas e a experiência do Daesh iria assombrar qualquer nova entidade, além de que os sunitas estão muito mais dispersos pelo país.

Alguns dirigentes acreditam, tal como a liderança curda, que uma solução poderá passar por transformar Mossul numa região autónoma, à semelhança do Curdistão, composta por entidades mais pequenas com capacidade de gestão para acomodar a pletora de minorias que habitam na cidade – uma solução que dizem estar prevista na Constituição. “Antes, os sunitas eram muito sensíveis à ideia das autonomias, temendo que levassem a cisões, à fragmentação do Iraque, mas estão cada vez mais a acomodar-se a essa ideia”.