Swingando com um Woody Allen, músico amador, muito bem focado
Ao longo de quase duas horas viajámos pelos primórdios do jazz, cabeça povoada pelas imagens do cinema do clarinetista de serviço. Um concerto descontraído feito de amor por aquela música muito específica. Num Coliseu dos Recreios esgotado, ficámos todos muito bem servidos.
Há um homem sentado na fila à nossa frente que, durante todo o espectáculo, não tirará os olhos do ecrã. Não do ecrã que surge no fundo do Coliseu como único adereço de palco — o grande pano branco sugere realmente um ecrã, o que, neste contexto, faz todo o sentido —, mas do ecrã do aparelho em que regista toda a acção. Por várias vezes poderia ter gritado que, tal como em As Faces de Harry, Woody Allen estava desfocado — a culpa seria do aparelho, não de Allen. Poderia também ter exclamado, recordando Manhattan, onde ouvimos o cineasta tocar o seu clarinete nos minutos iniciais, que o lisboeta Coliseu dos Recreios, neste 4 de Julho de 2017, tinha muito de clube jazz americano de tempos há muito idos — para exclamarmos o mesmo bastava que, tal como o homem que filmava na fila da frente, víssemos apenas o que o palco mostrava, ignorando tudo o resto. Afinal, não sendo este um concerto com cinema dentro, é um concerto com cinema sugerido.
Quando a banda nasceu, explicou Allen ao início, os músicos tocavam para seu próprio prazer, sem pensar se público algum se interessaria por ela. “Ficamos sempre surpreendidos quando há gente a ver-nos”, rematou em clássico momento autodepreciativo, depois de descrever a quem pudesse ser apanhado desprevenido que a Woody Allen & The Eddy Davis New Orleans Jazz Band toca “música autêntica de Nova Orleães”, ou seja, a do jazz dos primórdios. “Sentem-se e apreciem”, sugeriu por fim, antes de regressar à sua discreta cadeira no centro do palco. Sentados estávamos já no Coliseu lotado para o receber. E apreciámos.
A New Orleans Jazz Band é um sexteto de músicos hábeis e rodados a que se reúne um clarinetista definido, nas suas próprias palavras, como um “amador tolerado” — “tenho a certeza que, nas minhas costas, reviram os olhos e dizem, ‘bem, temos que o ter na banda porque é o nome dos filmes’”, disse certo dia em entrevista. E é verdade que, entre o líder e homem do banjo Eddy Davis, o pianista Conal Fowkes, o trompetista Simon Wettenhall, o trombonista Jerry Zigmont, o baterista John Gill e o virtuoso contrabaixista Greg Cohen, com John Zorn ou Tom Waits no currículo e efusivamente aplaudido nos solos, Allen é realmente o amador que, perna esquerda cruzada, recebe o foco de luz sobre si e se lança com todo o amor e empenho sobre as melodias da música da sua adoração, num sopro por vezes titubeante — mas os fiéis escudeiros a seu lado logo tratam de disfarçar as fragilidades —, outras vezes fluído e inspirado, apesar da modéstia dos feitos. Isso, porém, não é novidade. Em palco está afinal Woody Allen, o cineasta nova-iorquino de 81 anos, a brindar-nos com o seu hobby. Ao longo das quase duas horas de concerto, fomos bem servidos.
O ambiente descontraído e festivo vivido entre o público era o mesmo que se sentia no palco, ocupado como se o septeto estivesse a tocar para algumas dezenas numa das suas actuações regulares no Café Carlyle, em Manhattan, e não perante milhares na sala histórica de uma capital europeia – eles já estão habituados, que o Coliseu não lhes é cenário novo e até estiveram há uns dias no mítico Royal Albert Hall.
Sem alinhamento definido e viajando ao sabor do improviso, com amplo espaço para os solos dos sopros e do contrabaixo, ou para que os sopros se calem para que seja o piano a destacar-se, a banda leva-nos em viagem pela música sincopada do jazz que se definia enquanto tal nas primeiras décadas do século XX. Não há dança animada na salão, mas soltam-se palmas a compasso a marcar o ritmo, aplaude-se um inspirado solo de trombone com surdina em My baby rocks with one steady roll e incentiva-se o Woody Allen que se contorce ao sabor das notas, perna sempre traçada, quando o foco de luz incide novamente sobre si.
Ouvimos o Memphis blues de Louis Armstrong e ouvimos o St. Louis blues composto pelo homem, W.C. Handy, que Armstrong cantava no seu referido blues de Memphis. Swingamos o eterno Down by the riverside e, nele, vemos John Gill abandonar a bateria para, na frente do palco, tomar brevemente o lugar de Eddy Davis enquanto vocalista de serviço — o mesmo fará Simon Wettenhall noutro tema. O concerto avança, tema após tema prolongado para prazer dos instrumentistas, e porque esta é a velha música de Nova Orleães, mas é também a música que tanto ouvimos no cinema de Woody Allen, esperamos que a qualquer momento surja no pano em fundo no palco aquele tipo de letra tão simples quanto elegante dos genéricos dos seus filmes: “Written and directed by Woody Allen”, leríamos, e a banda continuaria a tocar mais um par de minutos antes de, cena seguinte, sermos transportados para os bastidores do Coliseu, onde um clarinetista neurótico se recrimina pelas falhas no concerto enquanto os colegas o tentam confortar. Nada disso aconteceu.
Perante os aplausos de pé, a banda regressa ao palco para um encore. “Temos tempo para mais uma?”, pergunta Woody. “Tocamos até cair para o lado, não queremos saber”. Tocaram mais três, sem cair para o lado e com Say si si pelo meio —“In Spain they say ‘si, si’ / In France you’ll hear ‘oui, oui’”. O protagonista levanta-se pela última vez e agradece. Diz que é sempre um prazer regressar a Lisboa e acrescenta, em modo tipicamente Woody Allen: “Passei a tarde no Aquário e por isso é um prazer ver tantos rostos humanos. Obrigado por terem vindo”.
A banda despede-se e abandona o palco. O homem que vira todo o concerto através do pequeno ecrã sorri feliz. Woody Allen, o músico amador, ficou muito bem, nada desfocado.