Produção de Ministério do Tempo parada devido a salários em atraso
O elenco da série da RTP denunciou no Facebook os sucessivos atrasos nos ordenados que levaram à decisão conjunta de interromper as rodagens. A segunda temporada está a ser produzida pela JustUp para a estação pública.
Quando a grelha de programação para o ano de 2017 foi anunciada, Ministério do Tempo surgia como a derradeira aposta da RTP no formato de série para o horário nobre. Na altura, Daniel Deusdado, director de programas da estação pública, referia a “criação de um novo modelo de negócio” em torno da ficção serializada, área que alocava a maior parcela de investimento da RTP. A série, adaptada de um êxito espanhol da TVE, percorre os quase nove séculos da História de Portugal e foi a primeira série da nova leva de ficção da RTP a ser renovada para uma segunda temporada. O elenco principal de Ministério do Tempo anunciou esta segunda-feira em nota publicada no Facebook que a equipa decidiu interromper a produção dos novos episódios devido aos ordenados em atraso.
As rodagens da nova temporada estão a cargo da produtora JustUp e têm sofrido um constante pára-arranca nos últimos meses. “Depois de uma primeira temporada com alguns percalços, oriundos de problemas vários — a cargo da Iniziomédia, a RTP decidiu entregar a produção a uma nova empresa — a JustUp/Maurício Valente Ribeiro e Luís Valente”, pode ler-se no comunicado assinado por actores como António Capelo, Mariana Monteiro, João Craveiro, Luís Vicente ou Andreia Dinis.
Com uma nova produtora, chegou uma nova equipa dirigida por Manuel Pureza. O elenco e a equipa técnica regressaram ao trabalho com uma confiança renovada no projecto, mas as irregularidades dos vencimentos da equipa continuaram. “Apesar da aparente normalidade, o que sucede no final do mês deixa-nos a todos atónitos: os ordenados não são pagos! (…) Toda a equipa decide parar até o problema estar resolvido”. Como resultado, o realizador afastou-se do projecto “por alegada quebra de confiança com a direcção da produção” e foi substituído por Miguel Guerreiro para dar continuidade às filmagens, mas a situação repetiu-se. “Voltámos a parar e, ao fim de um mês, a situação não está sequer em vias de resolução”.
O elenco termina o comunicado apelando à RTP pela protecção dos seus trabalhadores face a empresas que com “a cobertura de uma maior oferta no mercado audiovisual, se apresentam a concurso sem as condições mínimas para exercerem dignamente esta actividade”.
Ao PÚBLICO, António Capelo não quis alongar-se para além do que havia sido dito pela equipa. “Tudo o que queríamos dizer está no comunicado”, afirmou o actor, que interpreta Salvador Martins, secretário-geral do Ministério do Tempo. Já Andreia Dinis, que veste a pele de Irene Matos Dias, chefe do departamento de logística do ministério, reitera ao nosso jornal que “são os actores do elenco principal que assinam [o comunicado] mas a situação é transversal a toda a equipa que trabalhou neste projecto.”
Esta tarde, o CENA – STE (Sindicato dos Trabalhadores de Espectáculos, do Audiovisual e dos Músicos), emitiu um comunicado onde afirmava estar ao corrente dos acontecimentos há cerca de três semanas. “O CENA – STE foi informado desta situação por vários trabalhadores entrando desde logo em contacto com a JustUp para encontrar resolução breve. No entanto a produtora não respondeu aos nossos contactos”, clarifica o sindicato, que estima que sejam cerca de 60 trabalhadores do elenco fixo e adicional e da equipa técnica que têm ordenados em atraso. Segundo o CENA-STE, “a JustUp começou por co-produzir esta série a meio da primeira temporada com a Inizomédia, assumindo depois a totalidade da produção na segunda temporada”. A primeira temporada teve 21 episódios – inicialmente eram 13 mas depois foram emitidos mais cinco – e faltam seis episódios para concluir a segunda temporada, que deverá ter 13 episódios.
André Albuquerque, membro da direcção do CENA-STE, afirma em conversa telefónica com o PÚBLICO que “a maior parte destes trabalhadores estão a recibos verdes e não recebem os seus vencimentos há demasiado tempo”. O representante do sindicato faz questão de realçar que os vínculos precários são uma realidade que se alarga a todos os integrantes do projecto e que há, inclusive, actores e técnicos da primeira temporada que ainda não receberam vencimentos. Esta informação é corroborada por dois comentários feitos por dois trabalhadores na página de Facebook do CENA. “Falta-me metade do ordenado de Novembro relativo à 1.ª temporada”, conta Gil Fidalgo, técnico de áudio. Também o actor Jorge Fernandes fez um comentário à publicação do comunicado do CENA referente à segunda temporada. “Sem contar com os da 1.ª temporada, como eu, que também não receberam.”
A dívida nos vencimentos aos trabalhadores que rondará “as centenas de milhares de euros” e, de acordo com o CENA, é “da total responsabilidade da JustUp”, levou à interrupção das gravações a 31 de Maio. “Este é um projecto muito ambicioso que atravessa várias épocas, tem um grande elenco fixo e adicional e uma grande equipa técnica”, explica André Albuquerque, acrescentando que “já seria um trabalho de grande envergadura para uma produtora experiente, sendo-o muito mais para uma produtora sem experiência e com falta de profissionalismo”.
O representante do CENA – STE revela que a produtora justifica o sucedido com uma “derrapagem no orçamento que se liga à questão da inexperiência e do profissionalismo”. O sindicato sabe que um dos produtores tem trocado e-mails com o elenco sem apresentar, no entanto, uma resolução para pôr os pagamentos em dia, nem mesmo perante a ameaça de denúncia pública da situação por parte do sindicato. “Dizem que não conseguiram angariar o dinheiro necessário para pagar aos actores”. André Albuquerque reforça que a responsabilidade é da produtora e não da RTP e afirma que o canal “pode ter aqui um papel importante para ajudar a desbloquear as verbas”.
Em esclarecimento enviado às redacções, a estação pública clarifica que “até este momento, a JustUp não comunicou à RTP a incapacidade de continuar a série”. A RTP assume que “opera num mercado aberto e nenhuma empresa contratada tinha, até hoje, quaisquer inibições contratuais ou antecedentes de incumprimento para com a RTP. A partir do momento em que surgem problemas, não haverá novos projectos contratados a estas produtoras, até toda a situação estar esclarecida”. Na nota emitida pela estação pública, a RTP afirma “ser alheia aos problemas de incumprimento por parte da produtora” e manifesta a sua solidariedade para com elenco e equipa técnica, “desejando uma rápida solução do impasse”.
O CENA – STE refere que esta não é uma situação invulgar no meio audiovisual. André Albuquerque explica que este cenário se deve “à falta de experiência, aos orçamentos que fogem e à miríade gigante de produtoras em Portugal em comparação com o mercado mais restrito”. “Muitas vezes, as empresas iniciam projectos sem a certeza de que poderão cumprir aquilo com que se comprometeram. Não digo que este caso seja necessariamente um desses, mas muitas vezes contam com os trabalhos que vão ter a seguir para pagar os anteriores”, esclarece André Albuquerque, que aponta que “esta é uma lógica laboral que o CENA – STE naturalmente condena”.
O PÚBLICO tentou entrar em contacto com a JustUp mas não obteve resposta.