Há indícios fortes de que um downburst tornou o incêndio avassalador

Relatório do Instituto Português do Mar e da Atmosfera mostra imagens de radar da nuvem de fumo do incêndio de Pedrógão Grande a avançar até à estrada onde morreram 47 pessoas. Imagens revelam também como o incêndio foi intensificado em dois momentos, vistos como provas de um downburst perto.

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Imagens de radar a 17 de Junho às 19h20 em Portugal continental (ou 18h20 UTC): corte vertical da pluma que o incêndio está a criar nesse momento (assinalada pela seta vermelha) e que tem aqui cinco quilómetros de altitude. A partir daqui tem uma primeira intensificação, sinal de que o incêndio ganhou força IPMA
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A pluma desloca-se de A para B, que distam 30 quilómetros: EN é a estrada nacional EN 236-1 e VF é Vila Facaia, que a pluma vai passar e deixar para trás IPMA
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Às 20h (19h UTC), o radar detecta a a pluma do incêndio, fumo e materiais que lança para a atmosfera, a chegar a Vila Facaia IPMA
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Às 20h10 (19h10 UTC) a pluma está a chegar à estrada nacional, onde morreram 47 pessoas IPMA
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Às 20h20 (19h20 UTC) a pluma está a deixar para trás a estrada nacional IPMA
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Às 20h40 (19h40 UTC) a pluma chegou aos 14 quilómetros de altitude IPMA
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Às 21h (20h UTC), a estrada Vila Facaia estão para trás da pluma IPMA

Na tarde de 17 de Junho, o dia do incêndio de Pedrógão Grande, o centro de Portugal foi sucessivamente atingido por vários fenómenos de downbursts — uma corrente de ar gerada por certas nuvens que chega até ao chão, onde em seguida se espalha em todas as direcções e provoca ventos fortes. O downburst não é um fenómeno raro, tal como os incêndios no país, como constatamos sempre que chega a estação quente. O que foi tão extraordinário naquela tarde foi a conjugação entre um downburst e um incêndio.

Há provas de que um dos downbursts atingiu o incêndio que já tinha começado no concelho de Pedrógão Grande, uma coincidência nunca antes registada no país. Por causa dessa corrente de ar descendente extremamente forte, o incêndio foi oxigenado e empurrado pelo vento. Espalhou-se a grande velocidade — quase triplicando de dimensão — e chegou à estrada nacional onde morreram 47 das 64 pessoas que perderam a vida nesta tragédia.

Esta é uma das conclusões do relatório do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) sobre as condições meteorológicas que terão influenciado o incêndio de Pedrógão Grande, entregue na última sexta-feira ao primeiro-ministro. Dois dias depois do início do incêndio, António Costa perguntou ao IPMA se houve condições meteorológicas que tivessem favorecido a propagação do fogo (também fez perguntas à GNR e à Autoridade Nacional de Protecção Civil, ou ANPC). Pouco depois, o presidente do IPMA, Miguel Miranda, respondeu-lhe numa carta, dizendo que as previsões meteorológicas bateram certo, dentro das margens de erro expectáveis, com os valores de temperatura e humidade que foram depois registados (33,3 graus Celsius e uma humidade de 20%). E que os avisos emitidos estavam de acordo com as regras fixadas entre o IPMA e a ANPC, incluindo risco de incêndio florestal “muito elevado” para a zona de Pedrógão Grande.

Já nessa carta se levantava a possibilidade — então só uma hipótese — de que um downburst teria acelerado a propagação do incêndio e que teria tido um papel importante na tragédia na EN 236-1, que não foi cortada ao trânsito. O IPMA avançou depois para um relatório técnico e científico pormenorizado, e é essa tese que agora ganha força. “O relatório é um trabalho exaustivo: a análise de todos os dados do IPMA permite ter uma primeira resposta a algumas das questões levantadas por toda a gente, que têm a ver com o desencadeamento do fogo de Pedrógão Grande e as condições meteorológicas que condicionaram a sua evolução”, refere Miguel Miranda, acrescentando que o relatório tem elementos para todas as equipas que queiram fazer uma reanálise.

Imagens impressionantes

Há um conjunto de imagens dramáticas neste relatório. Foram obtidas pelo radar meteorológico de Coruche a 17 de Junho, a partir das 19h20. Estão reproduzidas por ordem cronológica na galeria que abre este artigo. Temos de olhar para elas como um corte vertical entre vários quilómetros de altura até cerca de mil metros. E o que vemos é a nuvem de fumo e materiais (uma pluma) lançados para a atmosfera pelo incêndio. A pluma que o incêndio está a criar num determinado momento está assinalada por uma seta vermelha, que aponta para uma área a verde mais claro. Vemos ainda que Vila Facaia (VF) e a EN 236-1 (EN) estão identificadas.

O que a sequência de imagens de radar conta é o seguinte: às 19h20, a pluma que está a ser gerada pelo incêndio encontra-se muito antes de Vila Facaia e da EN 236-1, entre Figueiró dos Vinhos e Castanheira de Pêra. Mas às 20h10 está a chegar perto da estrada nacional e às 20h20/20h30 está a passar por ela. Às 20h50, começa a deixá-la. E às 21h fica já para trás a estrada onde morreram 47 pessoas cujos carros ficaram aí aprisionados pelo fogo ou que fugiram de povoações próximas.

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A estrada nacional 236-1, fotografada no dia a seguir ao início do incêndio Adriano Miranda

Além de trazer outras provas para as horas a que esta tragédia chegou à estrada nacional, esta sequência de imagens revela ainda que o incêndio teve duas amplificações. Ou seja, alguma coisa o intensificou. Até às 19h20, a pluma do incêndio — que tinha começado às 14h43 perto da aldeia de Escalos Fundeiros, no concelho de Pedrógão Grande, e que a meio da tarde já ardia com intensidade — andou entre os níveis baixos da atmosfera e os cinco quilómetros de altitude. Foi por volta das 19h20/19h30 que começou a sua primeira amplificação, que atingiu o auge pelas 19h50/20h. A esta última hora, vemos que o “verde” da pluma alcançou uma grande extensão vertical — 13 quilómetros. Como se viu antes nas imagens, foi sensivelmente a essa hora (20h10) que o incêndio estava a chegar à estrada nacional. A segunda amplificação teve o seu máximo às 20h40, chegando aos 14 quilómetros de altitude.

Portanto, houve uma grande intensificação das chamas entre as 19h20 e as 20h40. Nesse período de menos de uma hora e meia, os materiais lançados pelo incêndio atingiram maiores altitudes na atmosfera, o que significa que o incêndio ganhou muita força. A sua pluma passou dos cinco quilómetros de altitude para os 14, quase triplicando assim a sua dimensão.

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O IPMA considera que o que terá estado na origem desta amplificação terá sido um downburst, fenómeno que pode ser confundido com um tornado. Mas enquanto os ventos de um tornado giram à volta de um ponto central, movendo-se para cima e para baixo, num downburst a corrente de ar move-se em direcção à superfície terrestre e, quando a atinge ou chega a algumas centenas de metros acima da superfície, dispara em todas as direcções (de forma radial) a partir desse ponto. A essas rajadas muito fortes que seguem em todas as direcções chama-se “escoamento horizontal divergente”, ou “outflow convectivo”. Geralmente, os downbursts e os seus outflows convectivos têm origem em nuvens cúmulo-nimbos, aquelas nuvens de grande desenvolvimento vertical que anunciam chuva ou trovoada.

Na tarde de 17 de Junho, o radar de Coruche observou vários downbursts que atingiram o Alto Alentejo e a região Centro do país e que, na generalidade dos casos, tiveram apenas consequências locais. Nas imagens de radar há pelo menos a assinatura de três downbursts, visíveis através dos tais escoamentos horizontais divergentes. Quando o ar que vem de cima se encontra com o ar que está mais abaixo, essa convergência produz as chamadas “frentes de rajada”, que são mais ou menos concêntricas — tal como as ondas concêntricas originadas por uma pedra atirada para um lago.

Na zona do incêndio de Pedrógão Grande, os dados de radar sugerem que também ocorreu aí um downburst — uma ou talvez até duas vezes. As provas para estes dois casos são distintas. Por cima da freguesia de Cardigos (no norte do concelho de Mação, relativamente perto de Pedrógão Grande), nas imagens de radar a assinatura das frentes de rajada não é identificável. Ainda assim, os dados de radar permitem concluir que se gerou sobre a zona de Cardigos um downburst por volta 19h06. E pelas 19h26 de 17 de Junho, refere o relatório, “observou-se uma nova assinatura deste mais recente downburst, associado à perturbação convectiva-mãe [a nuvem cúmulo-nimbo que o originou], que se propagava para Oeste”.

Este quarto downburst era de grandes dimensões: “Este fenómeno deve ser classificado como um macroburst, em virtude de se tratar de um downburst que afecta uma área envolvente a uma escala superior a quatro quilómetros, relativamente ao ponto de geração”, explica o relatório.

Às 19h36, diz ainda o relatório, o radar estimou a velocidade do vento do escoamento divergente criado por este grande downburst: um pouco a sul de Cardigos, a cerca de 350 metros acima do solo, o vento atingiu 117 quilómetros por hora, o valor mais elevado. Não é descartada a possibilidade de nos níveis inferiores da atmosfera o vento ter atingido velocidades ainda superiores (devido à dinâmica própria de um downburst e à interacção do seu escoamento horizontal divergente quer com a orografia da região, quer com a dinâmica do incêndio numa área próxima).

Ora, o downburst de Cardigos surge identificado (por volta das 19h06) um pouco antes da primeira intensificação do incêndio (por volta das 19h20). Cardigos e Pedrógão Grande estão relativamente próximos, embora ainda fiquem em linha recta a cerca de 35 quilómetros de distância. Mas ou foi o resultado do downburst de Cardigos — o seu escoamento horizontal divergente — que chegou ao incêndio de Pedrógão Grande e o amplificou; ou, então, houve um outro downburst perto do incêndio que o intensificou — mas que não foi identificado por radar.

O certo é que os efeitos deste último downburst ou do de Cardigos são visíveis na pluma do incêndio, essa sim bem identificada nas imagens do radar. As provas são indirectas, mas a intensificação do incêndio é considerada como um indício forte de que este fenómeno atingiu o incêndio. “A interacção entre a célula convectiva [a nuvem cúmulo-nimbo] e o fogo levou a uma amplificação da propagação da pluma do fogo, com efeitos grandes de dimensão”, resume Miguel Miranda.

Essa amplificação, lê-se por sua vez na síntese do relatório, deve ser “o resultado de escoamento horizontal divergente que se propagou sobre a região do incêndio de Pedrógão Grande”, acrescentando-se: “Podemos concluir que a interacção entre o escoamento divergente gerado pelas células convectivas e o incêndio iniciado conduziu a uma grande amplificação da pluma, em termos de extensão vertical e velocidade de propagação, não susceptível de previsão por modelos numéricos de previsão do tempo, e criando condições excepcionais de propagação no terreno.”

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