Um autor cheio de raiva gasosa, furor, excitação, imaginação
Primeiro de três volumes que abarcarão toda a produção de Mário-Henrique Leiria. Páginas plenas de energia criadora, que destrói a expectativa, a obediência ao cânone, mesmo o surrealista. Uma irreprimível vontade de subverter e agitar que o autor concretizou.
Este é o primeiro de três volumes que irão reunir a obra completa de Mário-Henrique Leiria. Neste, com a designação ampla de Ficção, reúnem-se contos, uma novela, guiões, peças de teatro e uma banda desenhada do autor. O segundo tomo recolherá a sua poesia, escrita entre as décadas de 1930 e 1970. Como nos explicou Tania Martuscelli, especialista na obra de Mário-Henrique Leiria, professora na Universidade do Colorado e autora, entre outros, de Mário-Henrique Leiria Inédito e a Linhagem do Surrealismo Português (Colibri, 2013), “o leitor vai poder perceber a evolução estilística de Leiria — nesse caso por via da poesia, mas que não se distancia de todo de seu estilo como contista, sobretudo nos anos 70”. À semelhança do que sucede agora, com o volume inaugural da série, o segundo “vai trazer todos os poemas éditos (como os livros já esgotados Imagem Devolvida — Poema Mito, ou Claridade Dada pelo Tempo, e ainda Climas Ortopédicos), dispersos e inéditos”. O tomo final incluirá “os manifestos, ensaios, aforismos, desenhos, cartas e ainda alguns textos incompletos”.
Numa carta escrita a Mário Cesariny, em 1949, Mário-Henrique parecia já delinear um plano de acção futura. Plano de quem, na verdade, nunca seguiria a linha recta de um projecto, mas, ainda assim, acabaria por agir de acordo com estas palavras, resgatadas aos anos das trincheiras surrealistas: “Reduzo-me a tentar, aqui, destruir tudo quanto posso, desde o conceito de família destes gajinhos, até às noções idiotas de arte e literatura que eles possuem. Estou, possivelmente, a caminho de uma posição anarquista declarada” (O Surrealismo em Portugal, Maria de Fátima Marinho, INCM, 1987). Numa outra carta, ao mesmo Cesariny, exclamava mesmo: “Vou cheio de raiva gasosa, furor, excitação, imaginação, ânsia” (O Surrealismo em Portugal). Qualquer um dos documentos nos permite adivinhar o furor iconoclasta e rebelde da sua “actuação escrita”, para nos apropriarmos do título de um outro desalinhado (Pedro Oom). Basta pensar nas corrosivas variações sobre o formato da fábula (O Zaneta e o Marolho, O Torvo e a Babosa, não é isso, O Corvo e a Raposa. Pois., etc.), que Mário-Henrique assinava como Avô Gazoza, nas páginas do jornal O Coiso, e que invariavelmente terminavam com uma ameaça de pancadaria nos seus supostos leitores infantis: “E não se esqueçam deste aviso do avô Gazoza, se não lá vai um chuto no cu que os lixa.” (p.499); “Isto é o que lhes afirma o avô Gazoza e se não acreditam vão todos corridos a chuto na peida que até arrotam a bife.” (p.503)
Depois de, no ano passado, ter publicado Casos de Direito Galático e Outros Textos Esquecidos, a E-Primatur regressa a Mário-Henrique Leiria. Podem reviver agora dois títulos que se tornaram peças lendárias da literatura portuguesa, pela sua inventividade rebelde, o seu desalinhamento, a casta idiossincrática do seu surrealismo. Neste volume inicial da Obra Completa reencontramos, então, os consagrados livros Contos do Gin-Tonic (originalmente, de 1973), com a sua desarmante irascibilidade e o humor negro — “Puxou o facão e espetou-o, preocupado e consciente, através do médico.” (p.113) — de quem sempre esteve plenamente ciente de pisar a superfície de um “planeta pequeno e inutilmente pequeno” (p.289). Juntam-se a estes títulos indispensáveis, mas profundamente alheios à mansuetude literária, textos de publicação dispersa, insertos em periódicos ou mesmo nunca antes publicados. Martuscelli trabalhou afincadamente o espólio leiriano, conforme atesta o pormenorizado índice que dá conta das múltiplas entradas deste vasto volume, que acolhe inúmeros espécimes esquecidos e que nunca haviam visto a luz do dia. São quotidianos de um absurdo feroz, histórias onde se bebe muito gim (ou “gin”, na peculiar ortografia de Leiria), se conspira e discute com ímpeto, se cometem actos de violência e, sobretudo, onde se reinventam as possibilidades do sentido, e do sem-sentido — “O Sam esmerava-se, saía tudo daquele chapéu magnífico e tubular. A mulher dele, cuecas floridas e um sutien americano, dava o apoio conveniente e as crianças funcionavam, trazendo a mesa de pés dourados e o saco preto dos mistérios e pasmos.” (p.524) O humor — quase sempre, o humor negro — que percorre estas páginas nunca é um sinal de alívio, uma técnica de descompressão, mas antes um sintoma, um sinal forte e implacável de que o mundo não deixou nunca de ser o lugar do absurdo — “Quando foi o aumento do pão e do leite, deitámos fora a avó Constância. O consumo baixou um pouco e lá nos aguentamos por uns tempos. Depois foi a carne e o peixe numa subida vertiginosa. Bem, resolvemos o assunto envenenando o tio Alberto, lá isso é verdade. Mas agora, como vai ser isto — e a Ermelinda bufava, irritadíssima.” (p.513)
Conforme é conhecido, Mário-Henrique Leiria emergiu nos conflitos e afirmações do surrealismo português. No entanto, Leiria teve uma fase mais explicitamente surrealista, como sucede, por exemplo, nos (Cadáveres Exquis — com Carlos Calvet) — “Trinta mil sanguessugas, tiritando de frio, propunham que se fizesse uma revisão do sistema ortográfico.” (p.416) Maria de Fátima Marinho revelava no seu estudo de que forma estas experiências seguiam de perto a “gramática” (passe o contra-senso) do surrealismo francês, muitas vezes, em termos vocabulares e mesmo frásicos. Posteriormente, Mário-Henrique passaria a utilizar a técnica surrealista mais como um ingrediente entre outros. Surrealismo, arrisque-se, como liberdade suprema. Mantendo-se fiel ao espírito de rebeldia da faúlha inicial, Leiria transcendeu a ortodoxia, de certa forma, em prol de uma libertação que caminhava por recintos mais amplos. Curiosamente, Tania Martuscelli chama-nos a atenção para um aspecto que poderá ser importante para o estudo do autor. Reflectindo acerca da interacção possível entre percurso biográfico e produção artística, revela-nos a estudiosa: “Apesar dos famosos conflitos dos surrealistas com outros artistas contemporâneos seus, Leiria era um intelectual que mantinha relações com outros, independentemente dos conflitos públicos.” É sabido que a atitude surrealista, nomeadamente a de Mário Cesariny, mas também a de Mário-Henrique, era de clara refracção em face da academia, da sistematicidade, do estudo rigoroso. Poucos intelectuais encarnavam de forma tão preclara esses valores como Jorge de Sena, com quem Cesariny manteve uma relação de cordial e persistente inimizade ao longo das décadas — que, de resto, era mútua (lembrem-se os terríveis versos que Sena dedicou ao autor de Pena Capital, nas páginas das suas Dedicácias). É nesse sentido que Martuscelli destaca, precisamente, Sena como exemplo, de certa forma, contrário à imagem que se vulgarizou de Mário-Henrique: “Talvez o maior exemplo seja o caso de Jorge de Sena. Quando vivia no Brasil, uma das raras viagens feitas por Leiria foi a Araraquara para, justamente, visitar Sena.” Aliás, antecipando um pouco o que será conteúdo do terceiro volume destas Obras Completas de Mário-Henrique Leiria, a investigadora brasileira revela-nos: “Ainda que a lenda conte — com base nas cartas que escreveu à advogada que cuidou do seu divórcio — que no Brasil Leiria havia passado o Natal com indígenas da Amazónia, ido ao Recife vigiar a ex-esposa que se havia casado com um brasileiro, etc., a família e amigos com quem viveu e conviveu em São Paulo diz que Mário fez duas viagens curtas, acompanhado de amigos. Uma para Araraquara, outra para a praia no litoral paulista. Nenhuma viagem longa em termos de distância ou tempo.” Como nos informa, Tania Martuscelli baseia-se base na “entrevista que fiz aos amigos e parentes” do autor. No já aludido volume final desta série, a estudiosa explicará em maior pormenor estas facetas mais ou menos desconhecidas, ou mal sabidas, ainda, da posição biográfica de Mário-Henrique Leiria. “De igual modo”, relata-nos “ainda que seja um herói literário, quanto à sua postura política, ainda que na realidade pensasse de modo bastante próximo das ideias anarquistas, não lutou (física ou pessoalmente) contra a ditadura brasileira. Portanto, não foi preso e torturado no Brasil como reza a lenda — e, uma vez mais, suas cartas.” E, voltando ao paralelo seniano, um aspecto não exactamente previsível do caso Mário-Henrique Leira, corrobora: “Assim como acontece com Jorge de Sena. Aliás, as cartas de Leiria devem ser lidas como composição literária, e não propriamente testemunhos de incríveis peripécias.” Ou, como nos conta, as “leiriadas” que os seus familiares ainda recordam. O terceiro volume da série, depois daquele que editará, na íntegra, a poesia de Mário-Henrique, há-de permitir obter uma imagem mais completa e, porventura, mais fidedigna do autor: “Em Portugal”, recorda Tania Martuscelli, “Leiria era amigo de Almada Negreiros, que não se aliou ou alinhou ao surrealismo (pois defendia — com certa razão — que todas as vanguardas eram ainda modernismo) e também de Manuel da Fonseca que, por ser neo-realista, seria, publicamente, alvo de chacota dos surrealistas.” Talvez não se devam tomar à conta de falhas, mas de naturais contradições, estes dados que aqui se sugerem. Informações que podem ajudar a compor um quadro mais abrangente e alcançar uma perspectiva integrada e contextualizada de quem nunca deixou de ser um rebelde das letras e da vida.