A Pietà de George Saunders
A devastação perante a morte de um filho, um pai que abraça o seu corpo quando uma guerra dilacera o país. É neste cenário de sofrimento que decorre o romance de George Saunders. Poético, pungente, mas onde cabe o absurdo e a caricatura. Lincoln no Bardo confirma um escritor soberbo
A ideia de Abraham Lincoln abraçar Willie, o filho morto, lembrou-lhe a Pietà. Um filho morre e o pai, ou mãe, agarram-se ao seu corpo como que a resgatar qualquer indício de vida e assim negar a sua morte. O escritor George Saunders ouviu a mulher contar-lhe que quando Willie Lincoln morreu, aos 11 anos, vítima do que se especula ser febre tifóide, o então presidente dos Estados Unidos visitava à noite a sepultura do filho no cemitério de Georgetown, debruçando-se sobre ela num trágico lamento. Willie era para Abraham como Jesus nos braços da Virgem na escultura de Michelangelo que está na Basílica de S. Pedro, em Roma.
Durante vinte anos essa imagem perseguiu Saunders de forma quase obsessiva, mas ele achava-se incapaz de a transformar em literatura. Até 2012. Nessa altura decidiu tentar e partiu dela para chegar ao subterrâneo como fez em cada um dos contos que publicara e o confirmaram como um dos mais notáveis autores em língua inglesa. Tinha 55 anos e não queria que a sua lápide o identificasse como o tipo "com medo de embarcar no projeto artístico assustador, que desesperadamente desejava tentar", como afirmou num texto sobre a génese de Lincoln no Bardo, o seu primeiro romance publicado em Março nos Estados Unidos e que acaba de ter edição portuguesa pela Relógio d'Água.
Era um livro muito aguardado por quem conhece e gosta da escrita de Saunders e também pelos que suspeitam do talento de quem cultiva apenas o conto como género. Para esses, o romance seria a legitimação do autor. Mas ele não se sentou a escrever o romance, ou melhor, não tomou a iniciativa de escrever uma história que trazia na cabeça e a dar-lhe maior fôlego. Numa recente entrevista ao Ípsilon, a propósito da publicação em Portugal de Pastoralia (Antígona, 2017), até agora o seu livro mais emblemático, Saunders expôs assim o seu método: "Quando começo uma história tento não ter nenhuma noção sobre tema ou enredo porque a minha cabeça não é suficientemente sofisticada para os abandonar se tiver de ser. Sei, de experiências anteriores, que se tiver um plano para uma história ela vai falhar. Há sobretudo improvisação, quando começo tenho apenas uma noção muito pequena, e geralmente é alguma coisa divertida. Então prossigo, linha a linha, tentado seguir aquela energia e muito lentamente os traços do que chamamos literatura começam a aparecer.”
É sempre um processo obsessivo. No caso deste romance não foi diferente. A grande diferença foi a imagem de partida: desta vez era pungente. Como enquadrá-la no exercício do absurdo que é uma característica da escrita de Saunders? Outra novidade: não se passava na América contemporânea dos desvalidos, mas no século XIX, entre a aristocracia no poder. Havia desafio suficiente para começo de trabalho, estímulo para um escritor que fala das suas histórias sempre como resultado de tentativas de história e nunca de histórias sobre qualquer coisa, com uma intenção. Por isso Lincoln no Bardo não é sobre o luto de Lincoln ou a morte de um filho. Lincoln no Bardo não é um livro sobre, como os seus contos não são contos sobre. Um escritor não se põe a escrever sobre, e se o fizer não se chama George Saunders, como não se chamaria Donald Barthelme, por exemplo, o autor que Saunders cita para explicar que o processo de escrita tem pouco de intencional, pouco a ver com sentar-se a cumprir uma tarefa premeditada.
Fantasmas em monólogo
Lemos a primeira frase - “No dia em que nos casámos eu tinha quarenta e seis anos, ela dezoito” – e, sabendo como Saunders trabalha, sabemos que essa frase resulta de um longo processo de reescrita. É o primeiro narrador e um dos principais, hans vollman. Teve de ganhar personalidade literária até se instalar como um dos centros de um romance em que a sua voz será apenas uma entre a multiplicidade de vozes sobre as quais Lincoln no Bardo se alicerça. Nessa primeira frase já tem de estar contido tudo aquilo que ele vai ser e se confirma e aprofunda na frase imediata. “Bem, já sei o que estão a pensar: um velho (não magro, um tanto calvo, a coxear de uma perna, dentes de madeira) exerce a prerrogativa conjugal, assim mortificando a pobre jovem...”
É o monólogo do homem que permanece na sua caixa-de-enfermo e partilha protagonismo com roger benvis iii (os nomes sempre em minúsculas no fim de cada solilóquio) e as páginas preenchem-se com outras vozes no mesmo registo de monólogo. Os fantasmas estão junto à campa de Willie, filho Abraham e de Mary. São entidades frustradas em vida que na morte reflectem a sua amargura, as expectativas, rendição, culpa, algumas virtudes. Destaca-se outra voz, um reverendo, mais sábio acerca da sua condição e da condição de todos. E há Abraham no seu torpor narrado pelos fantasmas, excertos de livros que contam os factos como se fossem inquestionáveis. “O jovem Willie Lincoln foi levado para o seu eterno descanso no dia em que as listas de baixas da vitória da União em Fort Donelson foram tomadas públicas, um acontecimento que causou grande choque entre o público nessa altura, dado o custo em vidas não ter precedentes até então. (in Setting the Record Straight: Memoir, Error, and Evasion, de Jason Tumm)...". Ou “Ele sentou-se, angustiado e a tremer, em busca de uma qualquer consolação. Ele deve estar num lugar feliz ou num lugar nulo neste momento. Pensava o cavalheiro” - agora é a voz de roger bevis iii.
Ao construir essas vozes, entre elas a de Willie, Saunders transporta para o romance uma das características distintivas da sua escrita: dar voz a personagens. É também um dos seus maiores prazeres, como confessou ao Ípsilon e como escreveria num artigo publicado no Guardian, também em Março passado. "Alguém que adora fazer vozes e pensar sobre a morte, tinha agora a oportunidade de passar quatro anos a tentar construir um grupo encantador de fantasmas falantes, ser assustador, substancial, comovente e, bem, humano."
Saunders não sabe precisar quanto tempo lhe demora um conto. “Pode ser um dia ou 14 anos”, disse-nos. Quando fala de Lincoln no Bardo diz que foram exactamente quatro anos e o que mudou na escrita “foi a escala, não o método”, porque é difícil fazer alterações no modo como se trabalhou a vida toda, refere este homem natural do Texas, mais precisamente da cidade de Amarillo, onde nasceu em 1958 numa família operária. Viveu, entretanto, um pouco por todo o país. Passou parte da infância nos subúrbios de Chicago, formou-se em engenharia geofísica no Colorado, trabalhou em Rochester, no norte do Estado de Nova Iorque e é actualmente professor em Syracuse, também em Nova Iorque. Começou a publicar em 1996, ensaios e contos marcados pelas suas origens, uma crítica social sublinhada pelo anedótico, retrato hilariante e impiedoso de uma sociedade onde a classe média baixa surge à margem, ou mais concretamente num enclave do qual é difícil escapar. Saunders foi um dos que saiu sem se retirar completamente. Sente pertencer a esse lugar que olha com hiper-realismo e conhecimento crítico como quem ri de si mesmo ou da tragédia que lhe esteve reservada.
No romance deixa esse ambiente, mas não abandona o absurdo. O mundo que cria é perfeito para o alimentar, mas envolto numa aura poética sem precedentes nos seus trabalhos anteriores. A começar pelo título que remete para uma espécie de estado transitório, existência intermédia, entre morte e renascimento, um purgatório. É sobretudo o bardo como o entende a cultura tibetana e não o bardo poeta, transmissor de histórias e lendas. Na morte do filho querido Lincoln está nesse lugar habitado por vozes também elas espectros, pairando entre o mundo terreno e qualquer coisa menos tangível. Assombram? Guardam? Quem são? Começam a ouvir-se aos poucos, e ganham intensidade logo que se sabe da notícia da morte do menino, depois de uma grande festa que o casal Lincoln dá para a sociedade americana no início da Guerra Civil. “A festa [dos Lincolns] tinha sido severamente atacada, mas todas as pessoas importantes tinham aparecido”.
O conjunto de vozes não constitui um coro. São isoladas, sem parecer surtir efeito ou influência umas sobre as outras. O único capaz de as ouvir e delas retirar um efeito é o leitor. Mas aos poucos elas vão-se articulando nas suas breves singularidades. São monólogos quase com a estrutura de um diálogo. Por vezes uma voz convoca outra e simula a tal conversa, o cruzamento. Interpelam-se deste modo, na sua contradição, diferença, concordância. Confirmam o conjunto - riquíssimo – nessa diversidade onde entram notas, cartas, escritos dispersos.
O tom geral é mais sombrio do que o que se conhece de Saunders, mas há notas, logo às primeiras páginas, que o identificam. Tiques de carácter denunciados por tiques de linguagem. Um sotaque, um palavrão, a loquacidade ou o seu contrário. Tudo vai sendo dessa forma intimamente revelado. Mesmo a crítica social, que persiste e se mantém actual, parte da identidade de um país que viveu colectivamente naqueles anos também um dos seus momentos mais dramáticos, quando o presidente estava em perda pessoal. A presença da morte, do sofrimento que causa mais sofrimento, e onde a única derrota desejável é a da dor. “Será que a coisa merecia isso. Merecia que se matasse.
À primeira vista era apenas uma questão técnica (mera União) mas indo mais fundo, era mais do que isso. Como deviam os homens viver? Como podiam os homens viver? Recordava-se agora do rapaz que tinha sido (escondendo-se do Pai para ler Bunyan; criando coelhos para ganhar uma moedas; parado na cidade a ver o cadavérico cortejo diário que debitava arrastadamente as duras palavras ditadas pela fome; a ter de recuar bruscamente quando um dos mais afortunados passava alegremente numa carruagem), sentindo-se estranho e bizarro (inteligente também, superior), de pernas compridas, sempre aos encontrões às coisas, a chamarem-lhe nomes (Ape Lincoln, Aranha, Ape-a-ham, Altura Monstruosa, mas também a pensar, tranquilamente de si próprio, que um dia poderia conseguir alguma coisa de si próprio.” É hans vollman, mas é também Lincoln e a América que promove o indivíduo e aceita a sua dúvida. Ou não. E são todas as vozes a ganhar corpo, emoção.
Elas são capazes de lágrimas num livro que chega num momento de interrogação mesmo que quando o estivesse a escrever esse sinal de pontuação ainda não estivesse desenhado, ou totalmente desenhado para a realidade como a conhecemos hoje. E vale para o colectivo como para o indivíduo. A morte que atravessa o romance de Saunders é a que um e outro estão permanentemente a enfrentar.