Cardo, uma planta mediterrânica que a ciência portuguesa está a explorar
É sobretudo plantada no interior de Portugal e pode ter muitos usos. Pelo menos assim pensam os cientistas de um projecto de investigação que junta várias instituições académicas do país.
Cardo. Ouve-se esta palavra e há quem pense logo num belo queijo. Mas alarguemos os horizontes porque a planta em tons violeta que desabrocha nos finais de Maio até meados de Julho tem mais para dar além da produção de queijo. Pode-se misturar nas sopas, ser utilizado nos chás, na produção de papel… Enfim, em múltiplos usos, muitos ainda por desenvolver. Um dos exemplos disso é o projecto Valorização Económica do Cardo (ValBioTecCynara), que tem como instituição promotora o Centro de Biotecnologia Agrícola e Agro-Alimentar do Alentejo (Cebal), em Beja. A ideia é investigar o cardo nas áreas da genética, morfologia, bioquímica ou biotecnologia.
O nome científico da espécie é Cynara cardunculus e é uma planta herbácea perene. Desmontando a espécie e viajando pela sua história, o registo mais antigo do género Cynara é do século IV a.C., pelo menos assim o refere a tese de doutoramento da bioquímica Ana Ferro de 2016, a partir de referências da italiana Gabriella Sonnante (do Instituto de Biociências e Biorrecursos, em Itália), considerada uma grande especialista em cardo: “As descrições mais antigas conhecidas do Cynara são por volta do século IV a.C., quando estas plantas eram populares entre os egípcios, os gregos e os romanos, que as usavam na comida ou na medicina.”
Uma referência de 1835
Voltando à Cynara cardunculus, esta espécie está bem representada no Mediterrâneo, pois é resistente a Verões quentes e a solos secos. O seu cultivo localiza-se na bacia do Mediterrâneo, em países como Espanha, Itália, França e Portugal. “Sobretudo no interior do nosso país”, realça Fátima Duarte, bioquímica do Instituto de Ciências Agrárias e Ambientais Mediterrânicas, da Universidade de Évora, e coordenadora do Grupo dos Bioactivos no Cebal. A investigadora acrescenta que o cardo não se encontra tanto no litoral do país devido à maior pressão demográfica e pouca disponibilidade de terrenos agrícolas, por exemplo. “Na zona de Sesimbra [no litoral] pode existir, mas não é frequente.”
É também nos países do Mediterrâneo que o cardo é muito apreciado em “pratos regionais”, como refere um artigo científico de 2013 na revista Journal of Agricultural and Food Chemistry, em que Fátima Duarte é uma das autoras. Na indústria, o cardo também é usado como biomassa ou para a produção de biodiesel. Contudo, em Portugal grande parte da sua utilização é nos queijos, para coagular o leite. Há registos do uso do cardo no Alentejo que datam de 1835, de acordo com o texto “Processo de Preparação dos Queijos na Província do Alentejo”, do médico Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara, mencionado na tese de doutoramento de um dos membros do projecto agora em curso.
“Tirando a flor, as outras aplicações têm-se perdido ao longo dos anos”, diz Fátima Duarte. “O projecto foi uma tentativa de ver o cardo noutras áreas que não estão exploradas. Pode ser visto do ponto de vista biológico, fitoquímico ou em termos das suas propriedades para a saúde.” E porquê mesmo o seu estudo? “Havia informação sobre o potencial biológico do cardo, muito baseado nas descrições e informações populares. Quando comecei a procurar dados na literatura [científica], percebi que havia ainda muito trabalho a desenvolver. E aqui estamos.”
Desde 2008 que os investigadores portugueses vinham a pensar nas potencialidades desta planta e, em 2014, começaram a juntar as peças. “A sua folha tem valor e faz sentido na produção de queijo, mas o resto da planta é subvalorizado”, explica a bioquímica.
O projecto começou em Outubro de 2015 e vai decorrer até Setembro de 2018, no âmbito do programa Alentejo 2020 e o financiamento é de cerca de 697 mil euros. Conta com 20 investigadores financiados por aquele programa, mas participam no total 31. Além do Cebal, junta instituições como o Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária, o Instituto Politécnico de Beja, a Universidade de Évora, a Universidade de Aveiro, a Universidade Católica Portuguesa e a Universidade Nova de Lisboa. Apenas as instituições do Alentejo estão abrangidas pelo financiamento daquele programa. E o projecto quer valorizar tanto a folha como a flor do cardo a nível económico partindo de soluções biotecnológicas.
Os grandes objectivos são: avaliar a variabilidade genética natural de populações de cardo; seleccionar perfis bioquímicos para novas aplicações biotecnológicas; valorizar a flor do cardo na produção regional do queijo tradicional de Serpa, Évora e de Nisa, assim como a folha através da extracção de compostos de valor acrescentado, como novos produtos farmacêuticos; e criar um campo experimental de Cynara cardunculus.
Comecemos então pelo último objectivo. Desde Abril de 2016, já foram criados dois campos experimentais: um no Centro Hortofrutícola do Instituto Politécnico de Beja, que já tem 484 plantas, e o outro em Évora, no Instituto de Ciências Agrárias e Ambientais Mediterrânicas e que já tem 426 plantas. No total há assim já 910 plantas a pensar nos estudos que aí vêm. “Este ano estão em plena floração”, refere Fátima Duarte. Como em geral o cardo dá flor no segundo ano, este ano já são recolhidas amostras do campo experimental.
Além disso, os cientistas têm apanhado amostras de populações espontâneas em vários sítios do Alentejo, desde Mora até ao Alandroal, passando por Reguengos de Monsaraz e Alvito, e chegando até Alcácer do Sal, Beja e Serpa. Ao todo, são 16 as populações espontâneas que estão a ser estudadas, sete das quais em Beja. “Há nitidamente uma grande concentração de populações [estudadas] em Beja, o que corresponde à realidade. E, pretendendo o projecto mapear a variabilidade natural, temos de ser sensíveis aos dados de ocorrência espontânea das populações.”
Na luta contra o cancro
E resultados? Do ponto de vista químico, os cientistas investigaram um processo de extracção da cinaropicrina, um composto orgânico biologicamente activo da folha. Durante o projecto, começou-se a melhorar o processo de extracção (que até agora demorava sete horas) e a pensar no uso de solventes mais amigos do ambiente. Agora, a extracção dura apenas 35 minutos e foi pedida uma patente europeia no final de Maio. “Interessará do ponto de vista económico a quem quiser extrair este composto”, diz a investigadora.
Por outro lado, o uso de compostos químicos do cardo também tem sido estudado por esta equipa para tratar o cancro da mama, nomeadamente o chamado “triplo negativo” (as células cancerosas não apresentam à superfície nenhum de três receptores habituais do cancro da mama para os estrogénios, a progesterona e a herceptina). E porquê o triplo negativo? “Porque representa um tipo de tumores de mama muito refractário. Corresponde a uma incidência relativamente baixa (cerca de 10%), mas com taxas de mortalidade elevadas e sem opções de tratamentos muito eficazes”, responde.
No trabalho, os cientistas aplicaram nas células do cancro da mama triplo negativo tanto o extracto de toda a folha do cardo como apenas a cinaropicrina. Depois, fizeram o mesmo com células saudáveis. “Quando estas células [de cancro da mama triplo negativo] são incubadas com o extracto ou com a cinaropicrina, o ciclo celular tem tendência (mais de 60%) para parar de se dividir”, diz Fátima Duarte. “Há uma redução na taxa de crescimento das células.” Ou seja, proliferam menos.
Houve ainda uma outra componente neste trabalho, a do combate a uma bactéria envolvida nas úlceras e em cancros gástricos. “Verificámos o efeito do extracto do cardo na bactéria Helicobacter pylori, diz Fátima Duarte, acrescentando que as amostras da bactéria foram cedidas pelo Instituto de Investigação e Inovação em Saúde (i3S) da Universidade do Porto (não faz parte do projecto). Percebeu-se que os extractos de cardo e a cinaropicrina conseguem inibir esta bactéria que se aloja na mucosa do estômago humano. Mas a investigara avisa que estes resultados ainda “são relativamente poucos”. “Ainda não conhecemos o mecanismo [de actuação]”, salienta.
Como o objectivo é também perceber a planta no seu todo, também estão a ser considerados aspectos como o tamanho da planta, o diâmetro das flores, o comprimento dos espinhos e o número de flores. “O objectivo é tentar correlacionar estes dados como perfil genético, bem como o perfil bioquímico”, realça a investigadora.
Além de tudo isto, o projecto pretende ainda divulgar na sociedade em geral as potencialidades da cultura do cardo. “Gostávamos de dar informação a quem quisesse cultivar cardo.” Mas ainda não foi feita nenhuma apresentação dirigida a produtores.
Sobre se existem outros trabalhos de investigação do cardo por outras equipas, Fátima Duarte responde: “Há muitos, talvez o que não tenha havido até ao presente é um número considerável de projectos que pensem no cardo como um todo.” Na área dos queijos, por exemplo, houve o Cardop, para a valorização do queijo da serra da Estrela como produto de Denominação de Origem Protegida (DOP), liderado por Paulo Barracosa, investigador da Escola Superior Agrária de Viseu. Outros projectos estudaram a produção de biomassa, a extracção de óleo das sementes para biocombustíveis ou as propriedades a flor como coagulante do leite. “Há equipas muito fortes em Portugal e reconhecidas a nível internacional no melhor que se faz em cardo”, frisa Fátima Duarte.
No futuro do ValBioTecCynara, Fátima Duarte diz que pretendem iniciar um programa de melhoramento e selecção do cardo, ou seja, eliminar as características que não têm interesse e escolher as plantas que sejam as melhores para os produtos finais. Querem ainda alargar a colaboração para fora do país. “Em termos de apoio à comunidade, seja nacional ou regional, a valorização do cardo passará em primeira linha pela informação e divulgação das suas aplicabilidades a novos produtos.” Por enquanto, os cientistas, na voz de Fátima Duarte, têm já uma certeza sobre estes quase dois anos de projecto: “Tem sido aliciante.”