Eu e o Paulo temos uma relação. Pronto, já o disse. Eu e o Paulo sempre tivemos uma relação logo desde o primeiro momento em que nos vimos na Secundária. Ainda retenho a imagem na mente: ele na esquina do Pavilhão A, de calças à anos 90, justas e magras, como as pernas, compridas do chão ao tronco, um tronco elegante, despreocupado, à vontade por debaixo de um rosto calmo, curioso, de olhos negros como o cabelo forte, daquele cabelo que dá vontade de agarrar e encher as mãos, quase animalesco de tão farto. Bastou-nos meio segundo, e depois ele desviou o olhar.
Nessa tarde encontrámo-nos por detrás do ginásio, ele calado e eu também, ele a querer saber, a saber, e eu com as mãos suadas atrás das costas, a tremer, com um pé atrás e outro à frente, ele mais alto que eu, assim ao pé de mim, e eu a percebê-lo mais velho, talvez no 10º ou 11º, e eu ainda no 9º e tantos nervos, nunca tinha beijado ninguém e não queria deixar de beijar, os lábios dele vermelhos de sangue, de dor, vontade, paixão?, amor?, um passo em frente e fechei os olhos.
Até hoje.
Não sei quem teve mais dificuldade em aceitar a nossa relação, se os pais dele se os meus. Quando finalmente arranjei coragem para contar a toda a gente à mesa de jantar, a minha irmã desatou a rir-se, a minha mãe desatou a chorar e o meu pai perdeu a fala.
Até hoje.
E eu a pensar, a ansiar, a desejar tirar este peso de cima dos ombros, eu a querer contar, partilhar este amor, este ardor no peito de coração aos saltos sempre que estivemos juntos e sós, desde o escuro do anfiteatro da Universidade à sala de cinema, passando pela casa quando mais ninguém lá estava até à sala de enfermagem ao fim do turno. Eu a querer dar-lhes tudo e em trinta segundos perder um pai e uma mãe, porque a minha irmã não conta e a minha irmã já sabia (sempre soube) entre amigos e amigas, conversas de rua e conversas de escola. A minha irmã também é enfermeira. Até hoje.
Mas ao menos os meus pais não me puseram na rua. Pura e simplesmente deixaram de o ser, pais, demitindo-se com justa causa e por escrito. Já com os pais do Paulo foi bem pior, e como, mal ou bem, já estávamos os dois a trabalhar, alugámos um T1 no bairro e, aos 21, começámos uma vida juntos.
Até hoje.
Entretanto casámos, pelo Civil, pois claro, o Paulo pediu-me em casamento no nosso 3º aniversário depois de um jantar de mãos dadas e uma vida de mãos dadas e eu disse que sim, para sempre, e para sempre fechei os olhos. Na cerimónia apenas os padrinhos do Paulo e os meus, os que não fugiram, os que não nos deixaram.
Até hoje.
Hoje caminhamos na marcha. De mãos dadas com as alianças bem à vista, para todos, para que todos saibam e todos vejam, o meu pai, a minha mãe (porque a minha irmã não conta, já o disse). E não, pai, eu não trago o rabo à mostra nem penas ou asas de todas as cores, sou apenas eu, eu e Paulo e uma bandeira em cada mão, essa sim com todas as cores, como sempre fomos, de todas as cores desde que o vi na esquina do Pavilhão A. Podia ter sido uma rapariga, foi o Paulo, e eu nunca deixei de ser quem sou, nunca deixei de lutar, estudar e trabalhar, e o que se passa na cama e lá em casa é só connosco e mais ninguém. Não é pai? Porque mais ninguém tem nada com isso e eu também nunca te perguntei o que fizeste com a mãe antes de me fazeres ou enquanto me fizeste.
Estou a caminho de casa e o Paulo vem comigo. Batemos à porta e a minha mãe, com dois poços fundos de lágrimas no lugar dos olhos, abraça-me. Já não vou poder dizer nada ao meu pai.