Resta a loucura. O que é?
João Tordo indaga sobre a memória e a decadência do corpo no romance que conclui a trilogia que mudou o rumo da literatura que o escritor produz. No fim, com O Deslumbre de Cecilia Fluss, atam-se todas as pontas soltas. As possíveis.
João Tordo (Lisboa, 1975) fecha a trilogia iniciada em 2015 com O Luto de Elias Gro, partindo de uma fórmula hipotética onde a prova da sua veracidade é secundária face àquilo que a exploração dessa possibilidade lhe permite enquanto escritor: “Memória + Tempo — Decadência = Verdade”. Cada uma destas variáveis, isolada, constitui o corpo do romance O Deslumbre de Cecília Fluss, o atar de pontas, fecho de ciclo, onde o escritor indaga sobre o envelhecimento, a demência, a fé, o papel da memória ou a experiência do presente.
No início o leitor encontra um dos três narradores do livro, Matias Fluss, homem de meia idade em perda progressiva precisamente da memória e a tentar escrever enquanto ainda lhe restam algumas faculdades cognitivas. “O envelhecimento e a doença vieram confirmar que, na verdade, existe um processo, à revelia da mossa vontade, que transforma aquilo que já aconteceu numa experiência completamente diferente, vivida no presente, em que a soma total do que vivemos equivale a pouco menos do que um momento de percepção, o lastro do passado em nós.” É a sobre essa impressão, a da “erosão permanente do passado”, que Matias Fluss recua no tempo e recupera a imagem de Cecilia. “Um dia, a minha irmã perdeu a virgindade, o mundo abriu-se como uma flor recente e todos ficámos expostos, o cálice, vermelho e sangrento, à mercê de uma sombra criminosa.”
É o princípio e neste princípio, avisa o narrador Matias, há os factos. Ao longo das mais de 300 páginas deste romance eles estarão sempre em confronto com o modo como cada um os percepciona, e é esse jogo entre o que se entende por real, construção do real, recusa do real, realidade paralela, emoção, sensação, medo, dor, amor e perda, certeza e dúvida, verdade ou veracidade o motor de uma narrativa onde, mais do que nas duas anteriores, vive da procura de um sentido — literal e literário — para muitos dos mistérios deixados em aberto nos dois primeiros romances desta trilogia. O mistério do que une as personagens que os compõem, do que as leva a um lugar e a uma identidade. Não o desvendar dos mistérios que não é suposto terem resposta porque a vida é apenas uma das possibilidades da vida e sobre isso resta a incerteza, como Tordo a escreve numa multiplicidade de sinónimos reveladora, uma vez mais, do seu trabalho de exploração de linguagem que acompanha o da procura de um novo sentido para a sua escrita desde que se lançou neste trio de romances.
Mas ao contrário de O Luto de Elias Gro e de O Paraíso Segundo Lars D., o recém-publicado O Deslumbre de Cecilia Fluss, terceiro título da trilogia e nono romance de Tordo, traz datas, mas os lugares permanecem inomináveis, como se o escritor quisesse sublinhar a importância do tempo e de todos os seus constrangimentos e efeitos na vida e na memória das personagens que criou. Ao longo do livro, estamos sempre a viver a ser confrontados com ele e com os paradoxos da memória, a partir do que dela entende o eu de Matias, de como a percebe um narrador omnisciente, o único que não se apresenta na primeira pessoa, e outro de que mais à frente se falará.
Matias adulto tem a percepção do tal paradoxo quando recua até à sua infância e a da irmã, Cecilia, para situar o momento em que a tal sombra se instalou e para a justificar se socorre do budismo, mergulho no sonho de ser asceta, mendicante, e com o tio, o louco Elias, encenam uma rábula que entra no delírio em que um já vive e o outro pressente como um futuro. “Guardo a memória de um desejo, o de ser um buda”, conta o narrador na sua voz presente sobre o passado que lhe vai escapando. Nesse princípio da sua vida, partilhava a casa com a irmã e a mãe, Alma, uma mulher solitária que fuma às escondidas e por vezes fala com eles numa linguagem inventada. São os anos oitenta do século passado, matias divide a sua rotina entre casa, a escola, uma paixão breve por Nadia, a descoberta da sexualidade, passeios de bicicleta e as visitas ao tio que mora numa cabana na floresta. Num desses passeios, Matias cai num buraco e essa experiência de total solidão e rendição irá moldá-lo tanto quanto a da perda que se segue.
Matias conta e sabe que a “memória subtrai” mas também acrescenta. Aos 14 anos teve uma conversa com a irmã. Como foi, vista do seu presente de homem adulto? “Qualquer coisa aproximada do que acabei de escrever”, ouvimo-lo nessa espécie de diário íntimo que é a forma da sua escrita, continuando a escrutinar a memória como se fosse uma entidade autónoma, separável da existência que a alimentou ou criou. “... neste processo infindável de subtracção, é natural que, por vezes, se engane, que o supérfluo vença sobre o importante e, nesse caso, suceda o que sucede à memória quando se vê a braços com a escassez: põe-se a inventar.”
Apoiando-se em fábulas, espiritualismo, ideias de deus, na psicologia, na sabedoria popular, mas também na cultura pop, João Tordo surge tão inconformado e ambicioso quanto nos dois títulos anteriores, mas neste solidifica numa unidade várias das suas virtudes enquanto escritor. A construção de diálogos, um sério trabalho de linguagem e outra coisa que lhe vem dos romances iniciais e aqui adquire um novo fôlego porque suportada por uma maturidade literária: a noção de enredo. Não se deixam pontas soltas numa teia intrincada onde várias personagens parecem reféns de um karma – para usar um termo do livro –, o da demência. É nesse contexto, quando já só quase resta a loucura, que surge o segundo narrador, uma ex-aluna de Matias, jovem, a única que não viveu o momento que mudou tudo, o da adolescência de Cecilia; a única que não sofreu ainda os efeitos de subtracção do tempo no corpo e na razão.