Há muita coisa a influenciar quem classifica os exames. Até a letra dos alunos
A especialista em avaliação, Leonor Santos, considera que os exames não contribuem para as aprendizagens e também que não garantem a equidade. Por isso é contra este tipo de provas tal como elas são feitas em Portugal.
Trabalhos de grupo, com uma componente oral, ou projectos de investigação prolongados no tempo podem ser uma alternativa aos exames de Matemática que conhecemos. Quem o diz é Leonor Santos, especialista em avaliação das aprendizagens, responsável pelo mestrado em Educação da Matemática, do Instituto de Educação da Universidade de Lisboa.
Leonor Santos deixa ainda um aviso: o programa da disciplina, em vigor no ensino básico, é "um crime" e deve ser alterado quanto antes.
Os exames são um instrumento útil da avaliação das aprendizagens a Matemática?
Não há evidência de que a existência de um exame contribua para as aprendizagens. A investigação, e a nossa própria experiência pessoal, mostram, aliás, que o estudo intensivo que se faz nas vésperas de exame traz alguma aprendizagem, mas que esta é de curta duração. Não creio que seja essa a razão principal para existirem exames. Podemos ter argumentos de natureza social, por exemplo, o dos exames serem uma prestação de contas ou de fornecerem elementos que identifiquem a qualidade ou não do sistema educativo.
Mas do meu ponto de vista esse objectivo não se alcança através de exames, mas sim de provas de aferição que, aliás, voltaram, o que vejo com muito agrado. São instrumentos importantes para revelar o próprio sistema educativo, servem para identificar as dificuldades principais dos alunos e permitem, inclusivamente, que se façam alterações fundamentadas nos currículos.
Mas os exames também não permitem que tal se faça?
Não é esse o seu objectivo. Os exames, o que pretendem é certificar as aprendizagens realizadas e ver quais os alunos que são capazes de ter um desempenho satisfatório ou bom e quais aqueles que não capazes de ter. Só que, na minha perspectiva, o sucesso escolar não é igual a aprendizagem. O sucesso escolar é ter bom aproveitamento, mas nem sempre um aluno que aprendeu tem necessariamente um bom desempenho numa prova que é limitada no tempo e que tem algumas características particulares, como acontece com os exames.
A diferença entre as provas de aferição e os exames é que as primeiras não contam para a nota.
A diferença é enorme porque os propósitos destas provas são distintos. O exame é uma prova que tem por objectivo classificar e hierarquizar os alunos. Enquanto as provas de aferição têm como preocupação fornecer informação detalhada às escolas sobre o desempenho dos alunos, o que pode constituir mais um elemento sobre o que há a regular, sobre aspectos a que é preciso dar mais atenção, etc. E, portanto, existe a preocupação de se dar um contributo para melhorar o ensino e, consequentemente, as aprendizagens dos alunos. O que não acontece com os exames. Sabemos que o que sai no exame vai influenciar grandemente o trabalho do professor em sala de aula. A existência de exames tem o efeito de reduzir o currículo aos conteúdos que saem na prova. Portanto, traduz-se num ensino muito centrado na preparação para esta avaliação.
A professora é contra a existência de exames seja em que nível for, mesmo no ensino secundário?
Os exames não contribuem para as aprendizagens e também não garantem a equidade entre os alunos. Antes pelo contrário. Por isso não, não estou de acordo com a existência destas provas.
Mas o argumento de que os exames promovem a equidade é recorrentemente utilizado pelos defensores desta forma de avaliação
Pois é, mas eu acho o contrário. Penso que os exames aprofundam a desigualdade. E porquê? Até chegarem àquele momento do exame, os alunos têm experiências que foram muito distintas. Nem todos trabalharam os mesmos temas com o mesmo nível de profundidade. Tiveram professores distintos, ensinos distintos e chegam ali com um passado muito diferente. Não é o facto de existir uma prova única para todos, num mesmo momento, que garante a equidade.
Podem dizer que os exames servem para responder a uma necessidade, que a sociedade sente, de que haja uma prova e resultados com garantias de objectividade, já que as classificações são dadas por um grupo de avaliadores que seguem os mesmos critérios de correcção. Mas também isto é uma fantasia. Se assim fosse não havia recursos de exames, porque as pessoas não iam gastar dinheiro a pedir a revisão de provas se com esta se não houvesse mudanças nas classificações.
Na revisão das provas geralmente as classificações sobem.
E porquê? Isto acontece não porque os primeiros classificadores tenham agido de forma incorrecta, mas porque somos humanos e temos atitudes diferentes que podem influenciar o modo como se aplicam os critérios de avaliação. Há investigação que já demonstrou que a preocupação dos avaliadores que estão a classificar pela primeira vez é a de manter os mesmos critérios para todas as provas. Mas quando está a fazer uma revisão de prova, a sua atitude é completamente diferente: tenta aproveitar tudo o que for possível.
Isso não quer dizer que aplique critérios de correcção diferentes daqueles que constam do referencial, mas por mais pormenorizados que estes sejam existe uma grande margem de decisão do próprio avaliador e isso é incontornável.
Os investigadores que têm estudado estas questões chegaram à conclusão que um classificador é sujeito a dois efeitos enquanto está a classificar as provas, sejam elas de exame ou testes dos seus próprios alunos. São os efeitos de assimilação e o de contraste.
E isso quer dizer o quê?
Comecemos pelo efeito de contraste. Foi constatado que um classificador quando se depara com uma prova de qualidade elevada, acima da média, vai ser mais exigente com a prova que vai ver a seguir. E o efeito contrário também se dá: quando encontra uma prova de nível muito baixo, na seguinte é mais permissivo. E quando se diz mais exigente e mais permissivo não se está a dizer que não respeite os critérios de avaliação. As decisões que se tomam para além do que está definido é que são diferentes.
Quanto ao efeito de assimilação o que este põe em evidência é quando se olha para uma prova, mesmo que esta seja anónima como é o caso dos exames, se infere um conjunto de coisas sobre a pessoa que a fez. Por exemplo, se é uma prova toda rasurada, em que se escreveu tudo encavalitado, involuntariamente, e inconscientemente, pensa-se que esse aluno tem as ideias muito confusas. Se, pelo contrário, for uma prova muito direitinha, sem rasuras, com uma letra bem-feita, infere-se que deve ser um aluno com bom desempenho. E estas informações vão, uma vez mais, ter efeito sobre a maneira como se aplica os critérios de correcção. Se for um aluno que tem um desempenho elevado somos mais tolerantes do que para aqueles que achamos que têm desempenhos baixos.
Para além das provas de aferição, que outro tipo de avaliação é que pode ser mais útil no que respeita às aprendizagens a Matemática?
Há desafios na avaliação externa que, com o tempo, podemos procurar enfrentar. Não há nenhuma teoria que diga que um exame tem de ser uma prova escrita, feita em tempo limitado, individualmente. Pode ser de outra maneira. Pode ter uma componente de trabalho colectivo, pode ter uma componente de trabalho oral, pode ser uma tarefa que seja mais da natureza de trabalho de projecto ou uma tarefa de investigação — em Matemática, faz todo o sentido —, em que o tempo não é um elemento informativo da maior ou menor capacidade que o aluno tenha.
Por exemplo, na Suécia realizaram-se provas orais feitas por grupos de alunos, em que lhes era dada uma proposta de trabalho de natureza investigativa, que eles exploravam e depois tinham de explicar como tinham feito e porque tinham feito dessa maneira. Qual é a grande vantagem destas alternativas? A vantagem é que permite testar capacidades matemáticas que fazem parte do que é expectável o aluno desenvolver e que não são possíveis de serem consideradas numa prova escrita com tempo limitado. E, se assim for, o tal fenómeno, que referi há pouco, do exame contribuir para reduzir o currículo já não acontece da mesma forma. Se existir uma prova oral em que os alunos têm que evidenciar a sua capacidade de raciocínio matemático e comunicação matemática então o professor tem de se preocupar em desenvolver essas capacidades ao longo do ano.
Mas este tipo de exames contam para avaliação?
Um exame conta sempre para a avaliação. Como já disse, é uma prova que tem por objectivo classificar e hierarquizar os alunos.
Que avaliação faz dos programas que estão em vigor?
O programa do ensino básico de Matemática foi mudado [pela anterior tutela] de forma radical em termos do que é que se entende que é saber matemática. De uma forma muito simplista, diria que uma grande orientação do programa de 2007 era a de que os alunos soubessem matemática com compreensão, percebendo o que estavam a fazer. Neste novo programa o que importa de facto é ter um grande domínio de cálculo e a compreensão virá mais tarde, quando o aluno for mais maduro. Tem coisas absolutamente desadequadas para o nível etário dos alunos. Estes memoriam, aprendem a fazer, mas de facto não compreendem. Isto não é saber matemática.
Defende a revisão do programa?
Defendo de uma forma absolutamente categórica que o programa devia ser quanto antes alterado. O que estamos a fazer é um crime relativamente aos alunos do ensino básico.