No museu espantado de João Maria Gusmão e Pedro Paiva
Duas exposições, uma em Lisboa, a outra em São João da Madeira, proporcionam ao espectador um encontro com a fantasmagoria do imaginário e do simbólico que marca a arte da dupla.
Nos quatro palcos de Os Animais que ao Longe Parecem Moscas, exposição de João Maria Gusmão e Pedro Paiva no Núcleo de Arte da Oliva, em São João da Madeira, há coisas que se movem ou que parecem mover-se, outras são surpreendidas pela visão do espectador, outras simplesmente devolvem-nos, quedas, o olhar.
Descrevam-se algumas: esparguete a voar, o osso de uma baleia, uma palmeira de plástico, uma máquina de lavar a roupa, uma hélice. São obras e fantasmas de outras obras que foram um museu (ou uma enciclopédia) possível, incompleto, instável de João Maria Gusmão (Lisboa, 1979) e Pedro Paiva (Lisboa, 1978). À volta desses palcos, que poderíamos considerar também como quadros ou enquadramentos, estão quatro projecções, uma câmara obscura e três esculturas cinéticas. É na escuridão, entre a luz e as sombras, que o espectador as descobrirá.
Mas o contraste entre os palcos brancos e as salas escuras, embora manifesto no espaço, talvez não seja o mais significativo. Em Os Animais que ao Longe Parecem Moscas há, em simultâneo, a ideia de uma continuação, assegurada por um olhar retrospectivo sobre momentos passados, e a irrupção de trabalhos inéditos. João Maria Gusmão e Pedro Paiva repetem, ao serviço da invenção da novidade, o contágio entre obras realizadas para exposições diferentes, a transição entre suportes artísticos ou a experiência estética como modo de interrogar os fenómenos naturais ou as faculdades humanas. Permanece especulativa a arte desta dupla quem em 2005 ganhou o Prémio EDP Novos Artistas e em 2009 representou Portugal na 53.ª Bienal de Veneza. Especulativa a fim não de chegar a resultados, mas de desestabilizar, com uma ironia espantada, visões deterministas ou reducionistas da realidade.
Desde 2001, quando começaram a expor, que o seu discurso e trabalho é informado por leituras de textos literários e filosóficos. Alfred Jarry, Fernando Pessoa, Victor Hugo, René Daumal foram alguns autores abordados, aos quais se junta, agora, Jorge Luis Borges. Foi a leitura interpretativa de um ensaio do escritor argentino, O idioma analítico de John Wilkins (1952), que instigou a realização de Os Animais que ao Longe Parecem Moscas. Nesse texto, o autor faz referência a uma enciclopédia chinesa na qual os animais não se dividiam em vertebrados e invertebrados, mas em categorias diversas que não se excluíam umas às outras. Dito de outro modo, escapavam às leis da generalização e à redução que a representação implica. É esse exercício, transfigurado artisticamente, que João Maria Gusmão e Pedro Paiva propõem numa enciclopédia onde cabem animais ou seres que usam uma faca, que são sujeitos a velocidades elevadíssimas, que têm cores primárias, que não têm cores primárias, que têm rodas, que são feitos de vidro ou que põem ovos.
O desconcerto, a decepção e o absurdo que esta taxinomia desperta surgem à luz de uma finalidade, a de deixar o espectador a sós com uma questão apenas subentendida: o que pode a categorização ou classificação das coisas dar a conhecer e a explicar? Nos palcos, as obras aparecem como objectos concretos intangíveis, taxinomias, ready-mades, instalações, situações. E, olhadas a uma certa distância, podem ser percepcionadas como imagens, objectos cinéticos, ilusões, planos fixos. Solicitam aos visitantes uma disponibilidade (e imaginação) para ver, escrutinar, pensar, atentar aos fenómenos que as coisas suscitam. Pode ser a queda de um baralho de cartas, o efeito da luz sobre um congelador, um pneu que desce sobre a tábua.
Uma exposição de zombies
À volta, por detrás das paredes, escuta-se o som do celulóide, da fita em movimento. Os projectores revelam imagens lentas e silenciosas à beira da suspensão, sugerindo a ilusão da imobilidade e do movimento – Casuar (2010), Três albinos a contar histórias junto à fogueira (2013) ou A Sopa (2009) – enquanto o aparato técnico lhes permanece indiferente. Mas as relações animam-se. As esculturas (especialmente Cabeça de Cavalo) podiam ser sombras projectadas, do mesmo modo que os projectores podem ser vistos como esculturas. Entretanto, reconhecem-se nos filmes alguns dos objectos vistos nos palcos.
Na verdade, tudo que se viu antes no palco foi recolhido nos bastidores de filmes da dupla, estratégia que os artistas já haviam utilizado em Loulé, em 2008, no âmbito da exposição Articulações, realizada nas Minas de Salgema. João Maria Gusmão e Pedro Paiva pensam a sua produção artística – quer se trata de filmes, fotografias, instalação ou escultura – como um todo heterogéneo, em que cada obra pré-existente pode oferecer sentido a obras criadas para uma exposição ou que ainda não foram fabricadas. É neste sentido que pode ser interpretada presença de A Sopa (2017) e (a,b,c) Triângulos e ecrã (2107), objectos que terão escapado, respectivamente, aos filmes A Sopa (2013) e Triângulos e Quadrados (2017), para se tornarem presenças físicas, tangíveis, como se estivessem vivos, ou antes fantasmas embalsamados das coisas fotografadas. Sim, como o autor da folha de sala sugere, esta é uma exposição de zombies.
É o sentido da relação dos humanos com os objectos, com o inumano (e não-humano) que parece estar no centro da exposição. O visitante encontra máquinas, objectos, materiais orgânicos, imagens de animais, formas geométricas, e é instigado a pensar, em moldes poéticos, sobre esse encontro. O que significa? Pode o homem conhecer aquilo que não produz? Ou só conhece aquilo que fabrica? Que limites existem para a antropomorfização de tudo o que rodeia? Gusmão e Paiva não nos deixam qualquer tipo de tese ou enunciado. Limitam-se a abrir aos visitantes uma experiência, de espanto, perplexidade e humor, que estes podem invocar assim que regressados ao seu quotidiano. Como se a memória das experiências pudesse perseguir e contagiar, fora do espaço da arte, a relação mundana, banal com as coisas
Desestabilizar certezas
Se há instituição que tem acompanhado os dois artistas é a Galeria Zé dos Bois (ZDB), nomeadamente na figura do seu director, Natxo Checa. Há mais de década e meia que os três constroem uma colaboração que se tem materializado em várias exposições no país e no estrangeiro. Recorde-se a realização em 2006 de Eflúvio Magnético (2ª Parte) e em 2008 de Abissologia: para uma ciência transitória do indiscernível (esta apresentada na Cordoaria Nacional com produção da ZDB) ou 10000 coisas, em 2011, mas também as excursões realizadas em conjunto a países como Angola, Chile, Argentina, Brasil e Marrocos. Lua Cão, patente até 1 de Julho numa antiga serralharia no Bairro Alto, em Lisboa – cuja primeira e mais curta versão foi apresentada em 2016, no festival Walk&Talk, nos Açores – é o momento mais recente dessa colaboração.
Trata-se de uma exposição de natureza distinta de Os Animais Que Ao Longe Parecem Moscas, o que não impede que se identifiquem ligações. Refira-se, a título de exemplo, a presença do filme Máquina de Lavar (teste de câmara) que remete para o eletrodoméstico com que o visitante se depara num dos palcos, ou nas afinidades entre Papagaio (djambi) e Casuar. Mas estas aproximações tornam-se discretas se se tiver em conta o que definiu e determina o projecto, que tem a curadoria de Natxo Checa.
As obras de João Maria Gusmão e Pedro Paiva não estão sozinhas, partilham o espaço com os vídeos de Alexandre Estrela, proporcionando um cruzamento de imagens, referências, preocupações e imaginários. As obras dos três artistas chegam mesmo a partilhar dispositivos e suportes de projecção e são activadas em momentos diferentes da visita, rodeando o espectador, fazendo-o imergir num espaço de projecções e aparições.
À partida poucos elementos aproximariam a abordagem da dupla do trabalho de Alexandre Estrela. Este artista tem pautado o seu percuso por uma pesquisa em torno dos fenómenos estéticos e perceptivos, como assinalam algumas das obras presentes (em particular 3 Sóis, L’ Ours ou I To Infinity), enquanto João Maria Gusmão e Pedro Paiva trabalham com o filme no quadro de uma especulação poética sobre a apreensão dos fenómenos do mundo. Percebem-se, contudo, entre os dois universos certas simpatias.
A mesma intenção de proporcionar ao espectador um reflexão sobre a visibilidade, de desestabilizar as suas certezas e convicções (aspecto comum a Onda, de João Maria Gusmão e Pedro Paiva, e Waterfalls, de Alexandre Estrela), de lhe consagrar outro tipo de experiências em que os sentidos, o conhecimento e a memória confluem. Ao mesmo tempo, e como escreve Natxo Checa no texto que acompanha a exposição, Alexandre Estrela, João Maria Gusmão e Pedro Paiva não deixam de conduzir a atenção do espectador para os espaços de esvaziamento, para as instâncias de materialização e objectualização da imagem, para o alinhamento das peças, para os intervalos gerados nas sequências. Não há aqui comentários objectivos, narrativas, mas um contínuo espanto diante das coisas. Um espanto que no caso de João Maria Gusmão e Pedro Paiva parece obedecer a uma fantasmagoria do imaginário e do simbólico. Eis a promessa que é feita ao espectador assim que ele entra nas imagens e nos sons de Lua Cão.