Impostos: de bicho-papão a acelerador do crescimento
Portugal foi dos países onde o rendimento do 1% que mais ganha mais subiu e onde as taxas de IRS para estes mais desceram. Temos de continuar o caminho de maior progressividade fiscal se queremos que a desigualdade não sirva de travão para o nosso crescimento económico.
O Governo anunciou que o Orçamento de Estado (OE) de 2018 reintroduzirá maior progressividade no Imposto sobre o Rendimento Singular (IRS), baixando os impostos a portugueses de menor rendimento. Esta proposta vem reverter em parte o ‘enorme aumento de impostos’ do Governo PSD-CDS que, no OE de 2013, reduziu a estrutura do IRS de oito para cinco escalões.
A dimensão e impacto desse enorme aumento de impostos não se pode negar. Efetivamente, a coleta do IRS aumentou cerca de 3,3 milhões ou 1,9 pontos percentuais do PIB. Já a carga fiscal sobre o trabalho em Portugal descolou da média da OCDE cerca de cinco pontos percentuais. Esta carga adicional significa que, para um mesmo salário líquido, o empregador tenha que pagar um maior salário bruto em Portugal do que noutro país, tornando assim o nosso país menos competitivo.
Com a saída do procedimento por défices excessivos, faz sentido que alguma folga orçamental seja aplicada na reposição de escalões do IRS. Com toda a probabilidade, a quebra de receitas será compensada com maior competitividade, maior consumo privado e menor desigualdade.
A equidade é o objetivo da progressividade fiscal, a par da justiça fiscal segundo o princípio da capacidade contributiva ou ‘de cada um segundo as suas capacidades’. Ricardo Arroja, num recente artigo de opinião, questionou se a progressividade é intrinsecamente justa, afirmando ser esta uma escolha política. Sem dúvida que o é, mas também tem implicações económicas, nomeadamente as suas vantagens enquanto estabilizador automático em tempo de crises e enquanto mitigador das desigualdades económicas, cuja literatura mais recente (inclusive do FMI) demonstra serem profundamente nocivas ao crescimento económico.
Já a afirmação de que a progressividade é constitucionalmente pré-determinada é desmentida precisamente pelo ‘enorme aumento de impostos’ de Vítor Gaspar e agora pela vontade da Geringonça de o reverter. O grau de progressividade é legislado no Parlamento e, implicitamente, sufragado eleitoralmente, como qualquer outra reforma.
Os escalões de IRS em Portugal têm muita história. Em 2000, o Governo Guterres introduziu um sexto escalão de IRS para rendimentos superiores a 10.000 contos (50.000 euros). O OE de 2006 trouxe a novidade do sétimo escalão para rendimentos superiores a 60.000 euros. Finalmente, em 2010, Teixeira dos Santos introduz o oitavo escalão para rendimentos superiores a 150.000 euros. O regresso aos cinco escalões representou, portanto, retornar ao século XX em matéria de estrutura fiscal.
Os últimos dados do IDEF permitem-nos ter uma ideia do grau de progressividade da estrutura fiscal se esta fosse aplicada aos rendimentos de 2009. A diferença entre os índices de Gini obtidos pelo rendimento bruto e rendimento líquido, denominado o índice de Reynolds-Smolensky, representa o efeito redistributivo dos impostos. Este é afetado quer pela carga como pela estrutura fiscal, sendo possível isolar a progressividade da estrutura fiscal dividindo o índice de Reynolds-Smolensky pela carga fiscal. Assim, estima-se grosso modo que a progressividade da estrutura fiscal do IRS tenha reduzido de 2,1 em 2009 para 2,0 em 2011 e 1,7 em 2013. Esta regressividade do ‘enorme aumento de impostos’ é confirmada pelos dados da Autoridade Tributária.
É expectável que o aumento de escalões do IRS atenue a desigualdade. Segundo o Eurostat, Portugal é dos países europeus com maior dispersão salarial, com os 10% que mais ganham com salários 4,3 vezes superiores aos 10% que menos ganham e 2,8 vezes superiores ao salário médio. É, portanto, normal e desejável que Portugal tenha impostos fortemente redistributivos.
No entanto, se queremos ser eficazes no combate à desigualdade, teremos que olhar de forma mais lata para o nosso sistema fiscal.
Parte do desafio está em desbloquear aumentos salariais aos que menos ganham. Para isso importa desarmadilhar a retenção na fonte. As taxas de retenção na fonte aplicam-se não ao excedente do último escalão, como no IRS, mas à totalidade do rendimento, resultando em quebras no rendimento líquido ao subir de escalão. Consequentemente, para verem o seu rendimento líquido (até maio do ano seguinte) crescer, os trabalhadores têm de pedir ainda mais rendimento bruto. Este obstáculo é particularmente grande para os trabalhadores independentes que perdem isenção de IVA e IRS a partir dos 10.000 euros.
Por outro lado, muita desigualdade deriva hoje dos rendimentos de capitais. Não se entende que 100.000 euros em salários sejam mais tributados que 100.000 euros em dividendos. Esta realidade é fruto da taxa liberatória que permite não englobar rendimentos de capitais na declaração de IRS. Está na hora de pensarmos se esta descriminação se justifica.
Segundo um estudo de Piketty e outros (2014), Portugal foi dos países onde o rendimento do 1% que mais ganha mais subiu e onde as taxas de IRS para estes mais desceram. Temos de continuar o caminho de maior progressividade fiscal se queremos que a desigualdade não sirva de travão para o nosso crescimento económico.