José Eduardo Agualusa: “Continuo a acreditar que o sonho é revolucionário”

A Sociedade dos Sonhadores Involuntários é um livro sobre o sonho de Agualusa de ver o fim do regime em Angola. Entre as teses do neurocientista Sidarta Ribeiro e a prisão dos jovens revolucionários, o escritor fala de uma obra que se impôs como um “bicho aflito”.

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Há dois anos, a prisão dos jovens revolucionários angolanos (revus), no caso que ficou conhecido como dos 15+2, despertou a vontade de José Eduardo Agualusa em voltar a pegar num livro que deixara incompleto e a partir daí não parou mais Daniel Rocha

No princípio, foi a Primavera Árabe, a seguir veio Luaty Beirão desafiante num palco em Luanda a exibir uma faixa “Zedú tira o pé de Angola” e a convocar manifestações contra o regime. Veio depois a desilusão, quando as revoluções do Norte de África não desceram continente abaixo e o livro ficou à espera.

Há dois anos, a prisão dos jovens revolucionários angolanos (revus), no caso que ficou conhecido como dos 15+2, despertou a vontade de José Eduardo Agualusa em voltar a pegar em A Sociedade dos Sonhadores Involuntários e a partir daí não parou mais.

“Qualquer livro resulta de uma necessidade interna, de alguma coisa que nos força a escrever, que nos leva a escrever. Nesse sentido, sim, tudo aquilo me incomodou muito, todo o processo e a prisão deles me incomodou. Escrever é uma tentativa de conhecer, de conseguir explicar alguma coisa que nos incomoda”, diz em entrevista.

Um livro deve ser escrito quando “existe essa grande ânsia interior” para o escrever, quando esse bicho aflito dentro de nós, que nos incomoda, que nos arrebata”, nos impele.

Além dos revus, o bicho aflito foi espicaçado por “uma série de conversas” com o neurocientista brasileiro Sidarta Ribeiro, criador, em Natal, do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. O cientista, que dedica grande parte do seu trabalho ao estudo do sono, do sonho e da memória, considera o sonho como “uma simulação do futuro” capaz de dar respostas a problemas de agora.

As conversas com Sidarta Ribeiro (inspirador do personagem Hélio de Castro no romance) que quase se goraram por causa de um voo para Natal anulado pela companhia aérea, acabariam por se concretizar porque quis a fortuna que a prefeitura de Natal resolvesse inaugurar as suas residências literárias precisamente com um convite ao escritor angolano (e a Tatiana Salem Levy).

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E o que tinha “emocionado” o escritor no princípio reganhou sentido e tornou-se urgente e necessário. Porque mesmo sendo um tema abordado amiúde nas suas crónicas do Rede Angola (o único meio para difundir a sua opinião regularmente no seu país fechou no dia 31 de Maio), “não tinha falado suficiente”. E o romance, ao contrário da crónica, permite “tentar entrar na pele do outro, tentar compreender o que está a passar sendo o outro”.

Mais premente, se quisermos ainda, porque “os revus estão outra vez sozinhos”, perdido o momentum ganho com todo apoio e pressão internacional e a atenção mediática conquistada pela sua prisão e julgamento, acusados de preparar um golpe de Estado por lerem o livro de Gene Sharp Da Ditadura à Democracia.

“Quando os revus são presos, há um movimento de solidariedade que se organiza e que, no caso de Angola, é um movimento que consegue estender-se inclusive até dentro do núcleo do poder. Eu esperava que depois da libertação, esse movimento continuasse, com outra expressão, com outra organização, de uma outra forma. Esperava que esse movimento tivesse continuidade e realmente não teve”, afirma desiludido o escritor.

Porquê? Por que razão aquilo que parecia o princípio de uma vaga de fundo se esboroou? “O regime angolano é um regime frágil, muito frágil” e mesmo assim abana sem cair, talvez porque “as pessoas vivem no medo e o quotidiano é muito difícil e sobra pouco tempo à generalidade das pessoas para se ocuparem com outras questões”.

Os partidos da oposição chegaram a tentar “aliciar os revus”, procuraram “incluí-los nas listas de deputados para as próximas eleições”, marcadas para 23 de Agosto, embora sem forçar a contestação com as suas próprias iniciativas. Porque os partidos da oposição “estão reféns do sistema”, garante o escritor.

“As lideranças dos partidos da oposição estão no parlamento, são deputados e os deputados têm carro, têm casa, têm a vida assegurada da sua família mais próxima e essas coisas são importantes em Angola. Acho que isso acaba por falar mais alto. Em conversas privadas que tenho tido com alguns dirigentes desses partidos, estes concordam que não se devia concorrer às eleições, que concorrer às eleições é estar a ser cúmplice de uma fraude gigantesca, mas depois concorrem.”

A oposição angolana acaba assim a legitimar o estado das coisas, a contribuir para o statu quo. Mesmo se na retórica sejam contrários, “apresentando provas de irregularidades, algumas muito graves”, no processo eleitoral.

Preparar a transição

O importante mesmo seria que “todas as diferentes forças, quer os partidos políticos, quer as Igrejas, quer as organizações não-governamentais, começassem a pensar na transição, porque isso hoje é óbvio, não é uma coisa que pode acontecer, é uma coisa que vai acontecer.”

“José Eduardo dos Santos já não será Presidente em 2018. Acho que estamos todos de acordo, inclusive o partido no poder. E com isso já é uma mudança, uma mudança grande. Não sabemos se o João Lourenço terá força para manter o partido unido. A partir de agora é uma incógnita. A impressão que eu tenho é que o João Lourenço será uma figura de transição, não vejo que tenha força para dirigir um partido tão complexo como é o MPLA.”

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O que irá fazer José Eduardo dos Santos depois de deixar a presidência também é uma incógnita. “Tenho impressão que ele próprio não sabe”, sublinha Agualusa. “Acho que o Presidente José Eduardo dos Santos não terá muito mais tempo de vida e sabe disso e a impressão que tenho é que ele quer apenas assegurar que a família não seja afectada pela sua saída do poder”.

Para o escritor, José Eduardo dos Santos e a sua família “não têm condições de sobreviver sem o poder”, porque o chefe de Estado angolano “é um homem sem amigos, um homem solitário”, tal como “a sua família é composta por pessoas solitárias”. “Posso estar completamente errado, já estive noutras vezes em relação a Angola, mas a impressão que tenho é que esta família não sobreviverá.”

No livro, Hossi Kaley sonha um encontro com o chefe de Estado no Palácio Presidencial. À medida que a conversa se desenrola, Hossy corta o Presidente e dentro dele sai outro mais pequeno que continua a falar, mas agora numa voz mais aguda, de dentro do qual sairá outro ainda mais pequeno, numa ideia de líder matriosca que parece a alegoria de um país pós-José Eduardo dos Santos, de onde brotará outro presidente parecido, mas com menos força.

Agualusa acrescenta a ideia de um regime “muito mais frágil do que aparenta e de que algumas pessoas imaginam”, um regime “preso por arames”, porém solidamente frágil. E aí volta ao retrato de José Eduardo dos Santos: “É extraordinário como uma personalidade tão frágil, tão limitado do ponto de vista intelectual, um homem que não tem carisma, que não tem ideias, que não tem amigos, conseguiu permanecer no poder tanto tempo.”

O passado muda?

Há um diálogo interessante a meio do livro, entre Daniel Benchimol e Jean Mpuanga, o mecânico de aviões que participou – embora sem querer – no desaparecimento de um Boeing 727 de Angola em 2003. “Uma pessoa é o seu passado. O passado não muda”, diz Benchimol fazendo soltar uma gargalhada do seu interlocutor que responde: “Tenho pena de você, senhor jornalista. O senhor não tem imaginação nenhuma. Para uma pessoa com alguma imaginação o passado está em constante mudança.”

O passado e a memória como parte integrante de quem somos é um tema muito presente neste livro e que remete para outro romance de Agualusa, O Vendedor de Passados, onde membros da elite procuravam um especialista de biografias que expurgava nódoas pretéritas para novos ricos sociais.

Segundo o escritor, “o passado vai mudando”, como se pode ver em relação aos acontecimentos do 27 de Maio de 1977, quando uma tentativa de golpe de Nito Alves desatou uma purga sanguinária dentro do regime do então partido único que levou à morte de muitos milhares – ainda hoje não há um número certo.

“Este ano, é verdade que são os 40 anos do 27 de Maio, mas talvez não seja só isso, de repente houve uma atenção sobre este processo e há uma curiosidade enorme, tanto em Angola, quanto no exterior. Surgiram uma série de livros, publicações, artigos nos jornais. Nesse sentido, o passado mudou, porque aquele passado não parecia ser capaz de inquietar o presente e agora, de repente, aí está ele.”

O escritor, que viveu esse período “como militante e activista” e teve amigos presos, sublinha que “aquilo que não indignava em 1977” hoje leva a agir. “Lembro-me bem a dificuldade que era de mobilizar jornalistas, de mobilizar as pessoas. As pessoas não tinham interesse nesse tema e hoje estão interessadas, estão sensibilizadas e estão revoltadas.”

Uma mudança que permite, passados estes anos todos, perceber os contornos do que realmente se passou a 27 de Maio e nos meses posteriores. “Não acredito numa verdade absoluta, acho que o que existem sempre são versões, são olhares, são perspectivas – o trabalho do escritor é estar atento a essas outras vozes. No caso do 27 de Maio, já há muitos livros de testemunhos, publicados entretanto, que permitem montar um puzzle – já dá para perceber o grau de responsabilidade do Agostinho Neto”.

Habituado a falar e a escrever sobre personagens e acontecimentos da história de Angola, Agualusa é, no entanto, avesso a versar em livro a sua própria história. “Fui muitas vezes ao passado e quero continuar a ir, mas não tanto ao meu próprio passado. A urgência deste presente já me ocupa tanto.”

Não lhe interessa a sua história pessoal como matéria de ficção? “Interessa, porque qualquer escritor recorre às suas memórias, àquilo que somos, mas a minha história pessoal não é digna de registo.”

Admite, porém, que “a infância é determinante” na visão de qualquer escritor. “O meu olhar sobre o mundo enquanto angolano tem a ver com tudo aquilo que vivi na infância e adolescência”. No entanto, garante que não é “pessoa muito ligada ao passado”, não é “saudosista”, nem sofre com saudades.

“Nós somos o nosso passado, a nossa identidade tem a ver com tudo aquilo que vivemos. Um homem que sofra, por exemplo, de amnésia, perde o seu passado e perde algo da sua identidade. Quando a pessoa realmente esqueceu – e acredito que seja possível – a própria lei prevê que ao fim de 20 anos não possa ser julgada por um crime.”

A conversa havia derivado para um dos personagens do livro, Hossi Kaley, antigo guerrilheiro com um passado obscuro de torturador que parece ter perdido parte da sua memória e daí já não ser a mesma pessoa que era durante a guerra.

“A grande questão é: aquelas pessoas que torturaram no 27 de Maio voltariam a torturar? Algumas sim, outras não. Portanto, algumas deveriam ser julgadas pelos crimes que cometeram e outras talvez já não faça sentido porque não são a mesma pessoa, transformaram-se. As pessoas mudam mesmo e, evidentemente, se eu sou outra pessoa não posso ser julgado, se me transformei a esse ponto.”

A ferida aberta do 27 de Maio

Os acontecimentos de 1977 permanecem por resolver, “ninguém foi responsabilizado, não houve sequer um debate público suficientemente amplo para julgar essas pessoas.” Se calhar, deveria haver, como houve na África do Sul no fim do apartheid, tribunais da reconciliação.

“As pessoas deviam ter sido ouvidas, deveriam ter sido confrontadas com os que torturaram, não para serem condenadas formalmente, mas para terem a oportunidade de dar uma explicação. Muitas vezes a pessoa que torturou precisa do perdão, porque não consegue conviver com o seu passado e estes tribunais de reconciliação o que têm, a meu ver, de melhor, de proposta mais generosa, é esta ideia de reconciliação.”

O que isso abre “é a possibilidade daquelas duas pessoas poderem partilhar o futuro. E isso não tivemos de todo em Angola e essa ferida continua. Estou-me a lembrar desta comissão de intelectuais que agora ficou conhecido como a Comissão das Lágrimas [que julgou os alegados intervenientes do golpe de Nito Alves], estas pessoas continuam a não reconhecer que estiveram lá, que fizeram aquelas acções reprováveis, então não podem ser perdoadas porque elas próprias não pedem perdão.”

O sobrinho de Hossi, um dos revus detidos no livro, defende a ideia de que “para salvar Angola não podemos deixar ninguém de fora, é um desafio que temos de enfrentar todos juntos.”

Algo com o qual Agualusa concorda: “Nós passámos por uma guerra civil, que é o horror dos horrores, algo que transforma as pessoas e as leva ao seu pior. É uma noite dos lobisomens. De repente, todos nós fomos monstros de uma forma ou de outra. Portanto, é necessário haver um movimento de reconciliação, é necessário que as pessoas chorem juntas, que façam o luto juntas.”

Embora seja sombrio e esteja carregado de cicatrizes, A Sociedade dos Sonhadores Involuntários acaba em tom de optimismo moderado, dando ideia de que esta é a simulação do futuro que Agualusa concebeu para resolver o problema do seu país. “É sempre bom fazermos essas simulações. Acho que é sempre bom colocarmo-nos no futuro, sobretudo em Angola.”

O livro “é o sonho de uma realidade que poderá acontecer, porque continuo a acreditar que o sonho é revolucionário, que o sonho tem esse poder transformador, o que falta é podermos sonhar em conjunto.” E Agualusa sonha muito, às vezes “romances inteiros”, “personagens completos”. Não tendo um sonhário, como Sidarta Ribeiro chama ao diário dos sonhos, regista no seu diário comum muitos dos seus sonhos. São mais de 20 anos de anotações que ultrapassam as cinco mil páginas. “Muitos dos sonhos que estão no livro foram recolhidos desse diário.”

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