De Adelaide a Joana, quatro histórias de sobrevivência e ajuda em Pedrógão
Adelaide Silva deu abrigo a várias pessoas e salvou vidas. Joana Guedes anda de aldeia em aldeia a ajudar quem nada tem. Quatro histórias de vida e resiliência em Pedrógão Grande.
A receita da sobrevivência de Adelaide (e mais nove)
Conta a história como se tivesse acontecido noutra vida, tal a desenvoltura com que narra as horas de aflição. Mas o olhar está vidrado. Tem em Nodeirinho uma das poucas casas em que a desgraça maior pediu licença e não entrou, tudo à prova de vidros duplos e toalhas molhadas. Adelaide Silva abriu as portas de casa a mais seis pessoas e três crianças que por aqui ficaram das 21h às 3h de domingo a ouvir o estalar das chamas. E todos sobreviveram naquela casa que foi um forte contra o fogo.
“Só via passar fagulhas e vento, parecia um tornado por aí adiante, que levava tudo. Encostei a mão a estes vidros e ardiam”, conta ao PÚBLICO a antiga administrativa da PT, de 78 anos, que correu para a janela a contar a história, que ainda revive cada vez que se volta para abrir aquela moldura para a terra queimada.
Fechou a porta de madeira da sala de estar por onde o calor, as chamas e as cinzas tentavam entrar pelo cimo da chaminé. A chaminé não deitou fogo desta vez e a porta de madeira combustível serviu de travão. Duas antíteses num cenário infernal que pareceram destinadas a aguentar aquelas dez vidas.
Tudo à volta ardeu. E ali, numa das aldeias mais afectadas pelo fogo, tudo é negro. É um cenário desolador com pinheiros mortíferos tombados, que travaram a fuga a muitos. Sobreviveram os que não fugiram, como Adelaide, os seis amigos e as três crianças. “A casa foi feita há 30 e tal anos e tem vidros duplos. Eu tinha as janelas fechadas. Era o único sítio onde havia ar respirável. Na varanda não se podia estar”, desabafa.
Foi de lá que viu várias casas arder e que tentou ajudar uma vizinha. “Tratei-a ali à porta, estava toda queimada.” O tratamento de Adelaide foi um alívio de toalhas molhadas da água saída do furo do fundo do quintal. Não foi suficiente. “Aqui as pessoas não precisam dessa ajuda. Precisam de ajuda psicológica, porque em casa sim, casa não morreram pessoas.”
Porque os animais também precisam de ajuda
É veterinário, mas por estes dias junta à tarefa de tratar de animais a de recolhê-los. A maioria são ovelhas. As que estão vivas, “estão muito queimadas” e precisam de medicamentos. Para as pessoas traz água. “Ainda há muitas aldeias sem água”, conta Carlos Daniel Cruz, médico veterinário que ontem de manhã andava a percorrer as aldeias para tratar de animais feridos e fazer o levantamento dos que morreram e precisam de ser levantados.
Estava em passo apressado em Nodeirinho, onde falou com o PÚBLICO junto à carrinha em que percorre a área mais afectada das aldeias de Pedrógão Grande. Já tinha ido às aldeias da Graça e de Vila Facaia, mas na verdade não sabe bem se foram mesmo essas aldeias, porque já as confunde no quadro que por aqui está pintado a negro. Os medicamentos para animais estavam a esgotar e precisa de repor rapidamente o stock, que está a ser oferecido pelo centro distrital de Coimbra. Porque os animais também precisam de ajuda.
Muitas destas pessoas viviam da pecuária e viram o fogo roubar-lhes o sustento. Joaquim Almeida perdeu cinco membros da família, irmãos da mulher e primos dele. Não fora esta desgraça maior e não conseguiria relativizar o facto de ter perdido o ganha-pão. “Não sei o que fazer”, conta. É apicultor e perdeu metade das colmeias, na aldeia da Graça, onde vive, apesar de ser natural de Nodeirinho. Para Joaquim, a recuperação da fertilidade dos campos vai ser o problema seguinte. Tem de esperar pela rotação das estações e é a pior, o Verão, que se aproxima. Não haverá verde que dali brote, depois de a terra estar estragada.
Tem escritura marcada para comprar três terrenos ao lado do seu, mas o solo de castanho e verde passou a cinza e preto. “Agora compro o quê? Carvão?”, pergunta, desolado. Não vai voltar atrás na compra, mas será dinheiro que lhe valerá de pouco.
O final feliz para dois desaparecidos na rota do Zêzere
O destino prega piadas sem graça. Confunde as palavras para lhes dar o destino que quer. Suelen e Yuri tinham começado o sétimo trilho da Grande Rota do Zêzere no sábado, aquele que tem como nome “o regresso da serenidade”, que começa em Bouçã e termina em Prudência. “O primeiro sinal foi quando notámos o céu estranho, tinha muito fumo e a cor era diferente”, conta Yuri. Não conseguiam associar a estranheza a nenhuma informação porque no sítio onde estavam não tinham rede de telemóvel e, por isso, não sabiam dos incêndios.
Passaram 30 minutos e com o tempo chegou o fumo e as chamas. “Sentimo-nos cercados pelo fogo.” E foi aí que pegaram nas mochilas e começaram a correr pelo único caminho que sabiam, o de regresso a Bouçã, no concelho de Figueiró dos Vinhos. Mas faltavam uns três quilómetros.
Ainda resistiram a ficar só com a roupa e uma t-shirt na cara para tapar o fumo. Mas os pulmões pediam descanso ao corpo e tiveram de abandonar tudo para sobreviverem. “Quando alcançámos a estrada vimos que estávamos muito cansados, muito fumo. Estávamos a sentir-nos sufocados”, por isso abandonaram tudo e correram os últimos mil metros até Bouçã.
Lá, encontraram quem lhes desse boleia até ao hospital de campanha que está montado no gimnodesportivo de Figueiró, com apoio médico e psicológico.
Ficaram sem documentos e sem telefones. Não sabiam que havia quem os procurasse. Os amigos que estudam com Suelen e Yuri em Coimbra tinham avisado amigos e os amigos chegaram a dois deputados, que os foram dar como desaparecidos na tarde de sábado em Pedrógão Grande. O percurso destes dois amigos de 26 anos confunde-se com o percurso do fogo em versão inversa: foram dados como desaparecidos em Pedrógão. Foram encontrados perto de Figueiró.
No carro de Joana há comida para quem mais precisa
O senhor Manel não come nada desde que o fogo deflagrou no sábado. Ontem de manhã, assim que as estradas abriram, chegou de pronto a primeira ajuda. Mas mesmo com insistência só conseguem que aceite uma peça de fruta.
Joana Guedes e mais duas voluntárias percorrem as aldeias do concelho de Pedrógão Grande num carro a distribuir água e comida porque “pode haver quem precisa de comer e não a tenha”. A caixa do carro tem de tudo. Leite, água, barritas energéticas, sumos, pão e fruta.
“Estamos a prestar a ajuda mais imediata para vocês não passarem mal agora. Depois vêm as técnicas da câmara e da Segurança Social”, conta Joana, que vai dizendo a quem encontra que vai por parte da Câmara de Pedrógão Grande e dos escuteiros.
Por estes dias, não só os técnicos das câmaras municipais como escuteiros, voluntários e crianças distribuem-se pelos vários sítios onde foi concentrada a ajuda que chegou de todo o país. O Atlético Clube de Avelar transformou-se de dormitório a armazém numa noite. Os militares do Exército que por aqui andam ajudam a fazer chegar leite, água, fruta e 150 refeições quentes. O quartel dos Bombeiros em Figueiró dos Vinhos é outro guardador de comida. Até de melancias.
A comida que aqui tem chegado de todo o lado, e que a ministra da Administração Interna, a Liga dos Bombeiros Portugueses e até o Presidente da República dizem já ser suficiente, é organizada por quem pode. Em Penela, dois estudantes ajudam os bombeiros a organizar a comida no quartel enquanto falam dos exames do secundário que só vão fazer mais tarde. Afinal saiu Alberto Caeiro, que eles achavam mais fácil. Para já, o apelo é que parem os donativos e que só retomem quando voltar a haver novo pedido, porque a logística não permite guardar os alimentos perecíveis por muito tempo e os que existem chegam para os mais de mil bombeiros que ainda ontem estavam na frente de combate.
Por ali, um grupo de crianças explica do que se faz a refeição de um bombeiro: uma sandes, uma maçã, uma banana, um pacote de leite e água.