O mais solitário entre os homens

Um rapaz de 20 anos entra na floresta e quer perder-se para sempre. Durante 27 anos viveu no limiar da civilização. O jornalista Michael Finkel ouviu-o e escreveu Fora do Mundo, livro onde Christopher Knight revela tudo para depois se esconder.

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Se tudo tivesse corrido bem, esta história nunca teria sido contada.  O seu protagonista ter-se-ia perdido para sempre na floresta. Era essa a sua intenção quando, num dia de 1986, depois de ter viajado de Norte para Sul dos Estados Unidos, inverteu marcha, voltou ao seu Maine natal e guiou o carro novo até quase ficar sem combustível por estradas cada vez mais secundárias e caminhos florestais até não ser mais possível prosseguir com um veículo. Aí, perto do Moosehead Lake, na região central do Maine, parou o carro, deixou as chaves lá dentro e embrenhou-se na floresta. Antes, ouvira as notícias na rádio, “Ronald Reagan era oPresidente dos Estados Unidos; o acidente nuclear de Chernobyl tinha acabado de acontecer.” Christopher Knight tinha 20 anos e um objectivo: viver longe do mundo até morrer.

Durante 27 anos esteve completamente sozinho junto ao lago Little North Pond. Apenas uma vez se cruzou com outro ser humano, um caminhante a quem disse olá sem cruzar os olhos; nunca fez uma fogueira, viveu de pequenos furtos e do que ia conseguindo armazenar guiado por uma astúcia que o ia salvando do seu principal terror: ser encontrado. Aconteceu numa noite quando furtava comida numa colónia de férias. Era um assalto de rotina. Foi preso numa quinta-feira, dia 4 de Abril de 2013. Estava barbeado e tinha roupa nova. Fora do tempo apenas os óculos, os mesmos que usava há 27 anos. Nada na sua imagem correspondia à do eremita clássico. Perguntam-lhe porque deixou o mundo para trás e ele não aponta uma razão concreta. Foi levado para o estabelecimento prisional de Augusta, capital do Maine, acusado de mais de mil furtos. O próprio Knight enumerou-os. “Pela primeira vez em quase dez mil noites, dormiu dentro de portas”, escreve Michael Finkel, o jornalista que conquistou a confiança de Christopher Knight e conta a história do eremita do Maine em Fora do Mundo (edições Elsinore), livro sobre a solidão de um homem que gostava tanto de estar sozinho quanto de livros, uma narrativa onde ecoa uma pergunta: porquê?

A conversa com Michael Finkel começa por aí. Ao telefone, desde Paris, o jornalista arrisca a resposta.

É a grande questão. Este é um livro de não ficção. Muita gente que o lê diz que se sente um pouco frustrada por não entender exactamente porque é que ele fez aquilo. Se se quer respostas para tudo talvez não se goste do livro, porque há mistérios que permanecem. Acho que a razão pela qual ele fez aquilo é tão simples quanto profunda. Ele disse-me que nunca, mas nunca, esteve confortável com outras pessoas à volta, que se sente sempre mais confortável sozinho. Tinha vinte anos quando foi para a floresta e aos vinte anos podemos fazer coisas muito loucas, radicais. A maioria das pessoas têm essas ideias, mas simplesmente guarda-as. Chris Knight fez qualquer coisa de muito radical. Podia ter morrido numa semana ou duas, mas tentou estar sozinho o máximo de tempo possível. Porquê? Porque sentiu a urgência de estar sozinho.

Por que é que ele ficou?
Porque estava muito satisfeito, quase feliz. Viveu vinte anos infeliz e depois descobre o contentamento com a decisão de estar sozinho e fica. Quando eu lhe perguntava o que é que ele achava da vida dele, ele expressava muito mais satisfação com a sua vida do que qualquer outra pessoa com quem falei no resto do mundo. Encontrou uma coisa que quase ninguém encontra: paz, serenidade. Ele foi embora porque sentiu qualquer coisa forte e ficou porque era feliz. É tão simples e profundo quanto isto.

Michael Finkel estava no Montana, o estado onde cresceu e vive, no nordeste dos Estados Unidos, quando leu sobre a história de Christopher Knight. Várias vezes sentira o apelo da solidão. Pai de três filhos, chegou a ir para a Índia para um retiro que prometia silêncio e meditação. Como Knight, também gostava de ler e da vida ao ar livre. E era jornalista. Aquela história interessava-lhe pessoal e profissionalmente.  Ali estava um homem completamente invulgar que ele queria conhecer. Não era o eremita comum, aqueles de que falam as histórias desde o poema épico de Gilgamesh. Nem como Confúcio, Henry David Thoreau ou “Unabomber”, como ficaria conhecido o matemático Theodore John Kaczynski, condenado a prisão perpétua acusado de terrorismo. Finkel escreve: “Nenhum destes eremitas ficou isolado tanto tempo quanto Knight, pelo menos não sem assistência de alguns ajudantes, ou sem estarem cercados pelas paredes de um mosteiro ou convento. É possível terem existido – ou existirem – eremitas ainda mais isolados do que Knight, mas nesse caso, nunca foram encontrados. Capturar Knight foi o equivalente humano a apanhar uma lula gigante. O seu afastamento não foi puro, na medida em que era um ladrão, mas ele persistiu durante 27 anos sem proferir uma palavra e sem tocar noutro ser humano. Poderíamos, por isso, argumentar que Christopher Knight, tanto quanto sabemos, foi a pessoa mais solitária de toda a história da humanidade.”

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Na região central do Maine, Christopher Knight parou o carro, deixou as chaves lá dentro e embrenhou-se na floresta. Ficou 27 anos sem ser encontrado cortesia michael finkel

Nem uma pegada, nem um som

E no entanto, viveu no limitar da civilização, a apenas três minutos de outras pessoas, de casas, mas sem nunca ter deixado uma pegada ou feito um som que o denunciasse. Sobrevivia por estar tão próximo e tão escondido. Só ele sabia o caminho entre o seu acampamento, numa propriedade privada perto do lago, e a casa mais próxima. “A explicação para o secretismo do acampamento residia nos pedregulhos do tamanho de veículos, provavelmente trazidos pelos glaciares da última Idade do gelo, espalhados desordenadamente por todo o lado, cobertos de musgo e líquenes. Em metade dos passos que dei tive de me apoiar com as mãos, agarrando-me às pedras em busca de equilíbrio, enquanto os ramos se partiam e estalavam, tão discretos quanto o alarme de um carro”, conta Finkel em Fora do Mundo, livro originalmente publicado em Janeiro deste ano, com o título Into The Woods e que seria pouco depois best-seller do New York Times. 

Em 2013, a história de Knight ia sendo tornada pública e despertando sentimentos contraditórios em quem a ouvia, aos bochechos à medida que iam sendo revelados pormenores. Desde a incredulidade, a condenação, à admiração ou desprezo. Louco, criminoso, herói ou "Homem da Montanha", "Homem Esfomeado", "Eremita", "Eremita de North Pound" como era designado antes da captura pela comunidade que sentia a sua presença sem nunca o ter visto. Finkel sentiu-se atraído por ele. Durante anos, a polícia fez tudo para apanhar este excêntrico que se revelaria demasiado normal para o tamanho da aventura. Nunca encontrou o seu refúgio e só lá chegou, guiada por ele, quando lhe pediram que mostrasse o seu lugar na montanha. "Meu Deus, é mesmo real", disse uma agente perante o que viu, citada no livro de Finkel. "Montou a tenda na orientação este-oeste", confirmou o polícia que o apanhou durante o furto. "Não houve coincidência. Foi baseado numa prática de sobrevivência. O acampamento dele não está situado no topo de uma colina, nem num vale. Está numa localização intermédia. Seguiu os princípios de Sun Tzu em A Arte da Guerra. Mas este tipo tinha saído directamente da escola secundária de uma pequena cidade, sem qualquer tipo de experiência militar", escreve ainda Finkel, citando o polícia. 

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Chris Knight apanhado pela câmara de segurança na casa de Debbie Baker tentando furtar alguma comida do frigorífico. A proprietária da casa apelidou-o de "Homem Esfomeado" Cortesia de Debbie Baker/Michael finkel

O que o seduziu nesta história?
Não sendo como Chris Knight, eu gosto de estar só. Mesmo antes de ter ouvido falar dele, fui para a Índia, queria saber o que acontece a alguém que decide passar algum tempo sozinho. Não é confortável, não é fácil, odiei aqueles dias que passei em silêncio, mas foi extremamente profundo. Talvez essa admiração por pessoas que conseguem passar tempo sozinhas tenha ficado.

Escreveu uma carta a Christopher Knight e enviou-a para a prisão de Augusta. Ele respondeu-lhe.

Por que acha que lhe respondeu quando evitava todos os contactos?
Quando recebi a carta houve um pouco de surpresa, mas não foi um “Oh Meu Deus, nunca pensei que isto pudesse acontecer!" Tive o sentimento estranho de que se fosse completamente aberto e sincero com ele, ele iria responder. Houve esta ligação forte, difícil de explicar por palavras.

Dessa sinceridade fez parte a confissão de “uma falha”, como lhe chamou Finkel. Knight fora educado para o bem por uma família protestante e sentia-se culpado por ter "roubado". Finkel enquanto jornalista fora despedido por ter criado um facto numa reportagem. “Em 2001, ao reescrever um artigo sobre trabalho infantil, juntei várias entrevistas para criar uma personagem compósita, um método narrativo que vai contra as regras do jornalismo”, assume Finkel no livro. Era uma reportagem para a revista do New York Times, passada na Costa do Marfim, e ele tornou-se um jornalista maldito a ter de mostrar que aprendera a lição para reconquistar a confiança dos editores. Fê-lo quando soube de Christian Longo, preso e acusado do assassínio da mulher e dos três filhos entre os dois e os cinco anos de idade. Longo fugira para o México onde vivia com uma identidade falsa: Michael Finkel, o jornalista mentiroso. Finkel foi atrás da história; iria escrever a reportagem que o recuperava para a profissão. Desse trabalho nasceu o livro True Story: Murder, Memoir, Mea Culpa (2005), adaptado ao cinema em 2015 por Rupert Goold, num filme homónimo com James Franco e Jonah Hill.

Michael Finkel contou o episódio a Chris Knight na correspondência que foram mantendo antes de Finkel apanhar um avião que cruzou o país do Montana até ao Maine, para visitar Knight na prisão sem saber se ele o receberia.

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Para o resto do mundo, eu deixava de existir Chris Knight a Michael Finkel

Foi com esse assumir de culpa que conquistou a confiança de Knight?
Não só. Tive a sensação de que teria de ser muito honesto com ele. Teria de lhe dizer que era jornalista, que não era uma pessoa perfeita; mas o que alterou a natureza da nossa relação foi uma coisa muito pequena: escrevi-lhe no solstício de Verão, o dia mais longo do ano, e havia uma lua cheia, a super-lua, a lua mais próxima da Terra. E falei-lhe dessa circunstância. Isso interessa aos nerds da natureza. De outro modo quem é que quer saber da lua ou se é solstício? Mas a super-lua e o solstício aconteceram no mesmo dia, e disse-lhe que me apetecia dormir na rua. Escrevi de um modo muito simples e sem saber que nessa noite, antes de receber a minha carta, ele estava na prisão a tentar falar com as pessoas pela primeira vez depois de quase 30 anos e escolhera para tópico de conversa o solstício e a super-lua. A resposta que teve então de quem o ouvia foi um “o que é que isso interessa! És parvo ou quê?” Tivemos essa pequena coincidência natural. Muitas vezes são essas pequenas coisas que levam às grandes ligações e proporcionou uma ligação que se prolongou ao longo desse ano.

Como descreve essa ligação, entre alguém que quer contar uma história e alguém que sabe ser a história mas não a quer contar?
Nunca fingi nada em frente a Chris Knight. Nunca lhe disse que não tinha importância ele ter roubado, que tivesse vivido na propriedade de alguém. O que senti foi curiosidade e queria ouvir o que ele tinha para dizer na sua maneira muito genuína. Teria sido muito fácil apresentá-lo como uma atracção de circo, um louco, um excêntrico. Ou alguém que furtava comida, uma ameaça a pessoas que viviam de um modo muito tranquilo. Eu não sabia o que sentir acerca dele e disse-lhe isso. Nunca lhe menti. Só lhe disse que estava muito interessado no que ele tinha para dizer. Desde a primeira carta percebi que a cabeça dele era espantosa, uma pessoa extremamente inteligente, podia ser até genial, pessoas que são tão inteligentes que podem viver de uma maneira totalmente diferente do resto de nós. 

Houve a tentação de o apresentar como herói?
Tentei não o fazer. Como percebe, falo dele de forma calorosa. Mas o meu trabalho é apresentar a sua história tão friamente quanto possível. Sim, podia torná-lo num herói. Uma das coisas que gosto em Chris Knight é que ele não se sente herói, não se vê a si mesmo enquanto herói. Ele diz, “sou um ladrão, troquei o bem pelo mal”. Sou humano, também cometo erros e dei o meu melhor neste livro, pequeno, mas que me levou três anos. Tentei que cada frase fosse o mais fiel possível à verdade. Não ter erros factuais, não cometer exageros. A história era tão invulgar que não admitia exagero algum. Não admitia nada excepto a verdade. Cortei tudo o que os fact checkers não puderam confirmar. Não quis que Chris Knight fosse nada além daquilo que já era. Não gosto apenas da história de Chris Knight, mas também do modo como as pessoas reagem a ele. Se nos sentimos próximos, calorosos em relação a Knight, ou se o odiamos. Nenhum desses sentimentos é errado. O modo como reagimos a Chris Knight diz muito mais sobre nós do que sobre quem é Chris Knight. É um livro sobre Chris Knight e sobre nós.

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Little North Pond: Durante 27 anos, Knight montou o seu acampamento junto a este lago, a três minutos da civilização da qual procurou fugir cortesia michael finkel

“Para o resto do mundo eu deixava de existir”

Essa viagem seria a primeira de sete que Michael Finkel fez ao Maine durante dois anos para se encontrar com Christopher Knight. Ele foi a principal fonte do jornalista. A última aconteceu em Abril de 2015, quando Knight parecia estar a regressar ao lugar de origem, a quinta da família, no Maine rural. 

Ele era o quinto dos seis filhos de Joyce e Sheldon Knight. Cresceu numa quinta perto de Albion, “a menos de uma hora de viagem de carro para leste” do acampamento onde viveu. Era uma família discreta, com tarefas domésticas atribuídas a cada uma das crianças. Chris contou a Finkel que a sua família era “obcecada com a privacidade”. Fez o liceu, era fascinado por computadores, gostava de História e odiava Educação Física, “fazia-me sentir como se estivesse aprisionado n’O Deus das Moscas”. Foi este rapaz que desapareceu e só voltou a ser visto aos 47 anos, num episódio que muitos especialistas compararam a um acto de suicídio. “Para o resto do mundo eu deixava de existir”, disse também Knight a Finkel.

Quando os polícias o prenderam ficaram espantados com a história e ainda mais espantados quando perceberam que o que ele dizia era verdade. Ao longo do livro fala dele como alguém que não mente. Alguma vez duvidou?
Claro! Pense bem na história, é inacreditável! Nunca foi a um médico durante 27 anos? Não morreu de frio? A casa nunca inundou? Nunca foi atacado por um animal? Nunca caiu e partiu um osso, nem sequer partiu os óculos? Nunca fez uma fogueira? A história é tão inacreditável quanto verdadeira. Eu poderia ser jornalista durante cem anos e nunca me iria deparar com uma história tão estranha e verdadeira.

Não é invulgar haver um sentimento de empatia do leitor em relação a Knight. A que atribui isso?
O melhor exemplo disso é o do polícia, Hughes, que o prendeu. Ele, que lida muito mal com alguém que infringe a lei, contou-me que não conseguiu ficar zangado quando o prendeu, que Knight era uma pessoa delicada, educada. As pessoas daquelas casas não podiam saber que ele não tinha uma arma nem era violento. A convicção é de que o seria – infelizmente, o mundo moderno não tem lugar para ele. Não o podem meter num hospital psiquiátrico, ele não é doente; não o podem pôr na prisão, não é um criminoso a esse ponto. Não há um lugar pare ele neste mundo e é isso que o faz triste. Ele sente-se miserável acerca dos seus crimes, mas não sabia o que fazer. É uma história muito complicada, mas foi por isso que se tornou um livro.

Ao longo de 27 anos, Christopher Knight assaltou muitas casas na vizinhança do seu acampamento. Furtava comida, roupa, ferramentas, colchões, rádios, uma televisão, baterias, lanternas, revistas e livros. E deixava tudo intacto, como se, na ausência dos proprietários, nunca ninguém tivesse entrado nas casas, ao ponto de lançar em alguns a confusão. Teriam simplesmente pensado que havia bifes no congelador? Foi apanhado em mais um abastecimento de rotina. Quando visitaram o acampamento que perseguiam há anos, os polícias não esconderam o espanto. “Era incrível. Do caos, Knight criara uma clareira do tamanho de uma sala de estar completamente invisível a alguns passos de distância, protegida por um Stonehenge natural de rochas e abetos cerrado”, lê-se em Fora do Mundo.

Knight montou o seu acampamento baseado numa prática de sobrevivência: nem no topo de uma colina, nem num vale, mas numa localização intermédia cortesia polícia do maine/michael finkel
Quando visitaram o acampamento que perseguiam há anos, os polícias não esconderam o espanto. “Era incrível. Do caos, Knight criara uma clareira do tamanho de uma sala de estar completamente invisível a alguns passos de distância" cortesia polícia do maine/michael finkel
Um dos muitos rádios de Knight, ao qual ele chamava "teatro para a alma", como é citado no livro de Michael Finkel cortesia michael finkel
A sua clareira estava protegida por um Stonehenge natural de rochas e abetos cerrado cortesia polícia do maine/michael finkel
Knight mantinha várias lanternas com as quais entrava nas casas alheias para os mais de mil pequenos furtos que fez para sobreviver cortesia polícia do maine/michael finkel
cortesia polícia do maine/michael finkel
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Knight montou o seu acampamento baseado numa prática de sobrevivência: nem no topo de uma colina, nem num vale, mas numa localização intermédia cortesia polícia do maine/michael finkel

O que sentiu quando visitou o acampamento pela primeira vez?
Nunca esquecerei. Estou muito habituado a caminhar pela floresta. O acampamento ficava a uns 200 metros para o interior [da floresta], aparentemente a coisa mais fácil de encontrar, no entanto não sei como explicar o quão louca e desorientadora é a floresta que o rodeia. Procurar aquele lugar é a tarefa mais frustrante de sempre; entendi em cinco minutos como é que se pode viver 27 anos sem se ser encontrado. Finalmente, quando chego junto daquelas duas pedras e vejo a clareira foi... como se alguém tivesse posto uma almofada na minha cara e a tivesse tirado de repente. Finalmente posso respirar e ouvir todos os sons, os pássaros e até os insectos. Foi uma das sensações mais espantosas que alguma vez tive e sempre que regresso volto a sentir a mesma coisa. Dormi lá cinco noites, sempre sozinho e foi maravilhoso. Preferi dormir ali do que num hotel de charme, foi o sono mais relaxante num dos sítios mais bonitos. Penso imenso naquele sítio e percebo porque é que Chris Knight gostava tanto dele. Se se gostar de natureza, de estar na rua e se se quiser um pouco de paz e sossego na vida, aquele sítio é mágico. Não tenho medo de usar esta palavra, mágico.

Acredita que ele foi feliz lá?
Completamente (Pausa) Ele é um homem estranho, mas encontrou um lugar no mundo onde se sentiu em paz. Infelizmente não era terreno seu e teve de furtar comida. É muito complicado, eu sei. Ele não gosta da palavra felicidade. Tem muito cuidado com as palavras. E usa a palavra contentment em inglês, uma felicidade menos profunda. Muitas vezes eu fazia-lhe uma pergunta e ele ficava silencioso durante bastante tempo porque queria responder-me com precisão. Disse-me que ou contaria a verdade ou não diria nada. Se viveu satisfeito? Tanto quanto sei, sim.

Além de um verdadeiro armazém com suplementos alimentares, onde se destacam conservas, doces, alimentos super-processados que intrigam ainda mais os médicos por ele nunca ter ficado doente, Chris tinha uma biblioteca com os livros que foi coleccionando dos seus furtos. Gosta de literatura e o seu livro preferido é Cadernos do Subterrâneo, de Dostoiévski. Disse isso a Finkel, outro leitor compulsivo que ainda não lera aquele livro do mestre russo.

Ler esse livro ajudou-o a entender melhor como funcionava a cabeça de Knight?
Sim. Não sei se alguma vez disse isto… mas quando estava a escrever percebi que este livro era sobretudo uma celebração da leitura de livros. Chris Knight adora ler e aquilo que o fazia mais falar eram os livros; o que gostava, o que leu, o que não gostava. Escrever um livro sobre ele não é o mesmo que fazer um filme.

"A lei não está preparada para um caso atípico como este"

Finkel vai construindo o retrato de Knight, reconstituindo diálogos, ouvindo quem o conheceu, quem partilhou com ele o mesmo território, cruzando pareceres de médicos, investigadores criminais. O “porquê?” sempre presente. O “como?” insistente, gerindo ambivalências. Logo no início da detenção, teve várias ofertas de pessoas disponíveis para pagar a sua fiança. Recusou sempre. Até o tribunal ter declarado outra, muito alta, para poder avançar com a investigação. Ele não gostava de estar na posição de vítima. Disse isso quando acharam que ele poderia ter Síndrome de Asperger. Não se enquadrava em padrões. Quando foi altura para ser julgado, a juiza declarou: "a lei não está preparada para um caso atípico como este". Vem no livro. Mas Knight mantinha que merecia castigo. "Não quero que as pessoas procurem justificar o meu mau comportamento numa tentativa de não mancharem aquilo que admiram em mim. Aceitem o pacote todo, a parte boa e má (...) Não arranjem desculpas para mim", disse a Finkel. Seria condenado a trabalho comunitário. 

Das conversas, sobressai a inteligência e uma honestidade quase pueril de Knight, o homem que não suportava o toque, que nunca teve um encontro amoroso, que é virgem, que nunca ri nem sorri mas que tem sentido de humor, que não se encaixa em rótulos. O mais solitário dos homens? Um homem que, por exemplo, achava Thoreau, o autor de Walden, um diletante e não uma referência como se poderia supor a um amante da natureza, um eremita.

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Só tive de cumprir as suas instruções: 'Já contei a minha história, agora deixa-me em paz'. E eu levei isso a sério, deixei-o em paz. Mas adoraria saber dele outra vez Michael Finkel

Por que é que Chris Knight não gostava de Thoreau?
Achei muito divertido [que não gostasse]. Ele não se importa de ir contra padrões ou com aquilo que pensamos sobre ele. O seu plano era ficar na floresta até morrer e nunca ninguém conheceria a sua história. Acho que não é que não gostasse assim tanto de Thoreau, mas desprezava a ideia de Thoreau ter entrado numa cabana para escrever um livro, ganhar algum dinheiro, mostrar os seus pensamentos, ficar famoso; para ser admirado. Quando o comparavam com ele, achava insultuoso. Knight não queria ser famoso. Não queria escrever nada, não queria que ninguém soubesse dele.

Mas deixou que escrevesse a sua biografia. Chamou-lhe a si, inclusive, o seu Boswell, referindo-se a The Life of Samuel Johnson [de 1791, da autoria de James Boswell, considerado o título percursor da biografia moderna]. Quais as expectativas de Knight em relação a este livro?
Sou jornalista, gosto de contar histórias, mas sou também humano e não estava cem por cento confortável em contar a história de uma pessoa que queria ser deixada em paz. Se ler o livro percebe que teria sido muito melhor se esta história não tivesse sido contada. Eu ponho essa questão no fim. Mas Chris Knight podia não ter respondido às minhas cartas, nem aceite as minhas visitas; ele disse que eu era o seu Boswell no encontro mais emotivo e disse que me autorizava a escrever a sua biografia. Uma coisa que não escrevi porque não tenho a certeza: acho que ele sabia que algumas pessoas curiosas, e jornalistas como eu, o iriam importunar para o resto da vida. Ao escolher uma pessoa para contar a sua história, permitia-lhe ter mais privacidade. Neste momento ele continua no Maine e o livro é uma espécie de vedação à sua volta. Se quiserem ler sobre Chris Knight não vão ao Maine para o incomodar, lêem o livro. Só tive de cumprir as suas instruções: “Já contei a minha história, agora deixa-me em paz”.  E eu levei isso a sério, deixei-o em paz. Mas adoraria saber dele outra vez, adoraria receber outra carta dele. Ficaria tão grato, mas entendo.

O que sabe de Christopher Knight agora?
Tanto quanto sei está vivo, no Maine, a viver de maneira muito privada. Não falo com ele há quase dois anos. Não ficámos amigos, ele é realmente um eremita. Não sei se estará feliz ou não, mas acho que encontrou um lugar. É um sobrevivente e a minha intuição é que encontrou pelo menos alguma satisfação. Provavelmente nunca será tão feliz quanto foi na floresta. As pessoas não o estão a importunar. Ele está a conseguir manter a sua privacidade.

Falou da palavra “amigo”. Do que sabe, ele é capaz de uma relação de amizade?
A um certo nível. Não comigo. Chris é muito inteligente, chamá-lo invulgar é pouco, não há ninguém sequer parecido com ele. Acho que ele é capaz de ter pequenas amizades, mas não com um jornalista. Eu queria alguma coisa dele e ele sabia, e essa não é a base para uma amizade. A sua pergunta é se ele é capaz de ter alguns amigos? A resposta é, sim é capaz, de forma muito limitada.

Ele não se considera um eremita, pois não?
Não propriamente, mas ele não se considera nada. Ninguém gosta muito de rótulos. Mas disse que esse lhe servia.

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