Histórias deste mundo e do outro

Nem só de contos é feito este livro, que abre com uma ficção escatológica, teológico-política, que tem um carácter de escrito último.

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A ideia de decadência está no centro do pensamento de Paulo Varela Gomes Miguel Manso

Entre 2012 e 2016 Paulo Varela Gomes investiu na criação literária todo o tempo que lhe restava. Foi uma espécie de conversão do professor e historiador da Arte e da Arquitectura à literatura, como se esta trouxesse consigo uma hipótese salvífica. Sabia ele, desde sempre, que a sua vocação mais profunda era a literatura ou só a descobriu in extremis? Seja como for, ainda deixou no espólio um conjunto de contos inéditos e um texto que é simultaneamente de ficção, de carácter ensaístico e de reflexão político-teológica. Este texto inclassificável quanto ao género é A Guerra de Samuel, o mais longo deste livro e de onde este retirou o seu título. A seguir vêm sete contos, dos quais apenas um, O Jardim do Éden, não era inédito (tinha sido publicado na revista Intervalo, nº7, Junho de 2015).

A Guerra de Samuel foi escrito poucos meses antes de o autor morrer (no final, há uma datação: “Escrito entre Janeiro e Fevereiro ed 2016”) e tem, tanto no tema como no tom, o aspecto de um texto testamentário: é uma visão decadentista do mundo e da civilização, e uma concepção da história que exige uma posição política face a ela. Samuel é um herói guerreiro, chefe de um exército que luta pela independência de Portugal relativamente à “Aliança Europeia”, formada por governos cleptocratas. Mas não podemos cair no equívoco de pensar que a questão nacionalista é fundamental neste texto: ele elabora alguns princípios de uma história universal e pouca importância dá à história nacional. O nome de Samuel­  e o texto explicita-o com grande empenho e detalhe­  é o do profeta que ungiu Saul e preparou a vinda do Rei David. Na ficção de Paulo Varela Gomes, essa personagem é uma figura complexa: tem traços do profeta bíblico, do político demagogo moderno, do herói guerreiro antigo e do chefe carismático, tal como o descreveu Max Weber. Essa personagem escreve um pequeno ensaio sobre “a decadência” que constitui um capítulo do texto A Guerra de Samuel, do qual é, digamos assim, o esqueleto ideológico e filosófico.

Quem seguiu, através das crónicas que publicou neste jornal e nalgumas manifestações públicas, o percurso ideológico e “espiritual” de Paulo Varela Gomes, nos últimos anos (e refiro-me a um tempo que vem de antes do momento em que lhe foi diagnosticado, após o qual se dedicou exclusivamente à literatura), sabe que ele fez uma defesa de um pensamento “reaccionário” contra o progressismo, do campo contra a cidade, do Antigo contra o Moderno. A ideia de decadência está precisamente no centro deste pensamento e encontra num autor como Oswald Spengler, o autor de O Declínio do Ocidente, uma referência fundamental. A personagem Samuel, no texto em que é protagonista, também diz que os livros de História que mais o impressionaram foram O Declínio e Queda do Império Romano, de Edward Gibbon, e O Declínio do Ocidente. E é com base em Spengler, nas suas teses de que as civilizações são como organismos biológicos que nascem, crescem, atingem o auge e depois morrem (lembremos que estas teses tiveram um sucesso enorme na Europa nos anos 20 e 30 do século passado e são um dos fundamentos da chamada “revolução conservadora”), que Samuel escreve o seu ensaio. Em toda a sua acção, ele é movido pela convicção de que a civilização está num período de decadência e tudo se desenha sob um fundo apocalíptico. Este texto de Paulo Varela Gomes desenvolve assim, sob a forma de uma ficção, uma reflexão sobre a teoria da história e um diagnóstico da guerra civil moderna como guerra mundial. Trata-se de uma escatologia pessimista, em que o político e o teológico se iluminam reciprocamente. O Antigo Testamento é a fonte que alimenta esta espécie de tratado teológico-político que é A Guerra de Samuel. Há uma proposição de base deste texto que poderia ser enunciada desta maneira: a história universal não é senão uma laicização da narrativa bíblica e é nela que temos de mergulhar para perceber o que se passa no plano temporal, secularizado. O mesmo é dizer que em tudo o que é essencial não há qualquer progresso, e é por se pensar em termos de progresso­  por causa do pensamento progressista (“co-natural à própria decadência do Ocidente, no sentido em que resulta dela e a precipita”) que a catástrofe se tornou iminente. Em suma: esta ficção teológico-política que se chama A Guerra de Samuel é um texto que tem um carácter derradeiro e vai buscar os seus fundamentos e inspiração não só às leituras bíblicas mas também a todo um pensamento trágico e dos fins que constitui uma importante constelação da qual Spengler fez parte. Evidentemente, Paulo Varela Gomes aproximou-se aqui de um pensamento que está nos antípodas daquele que marcou os seus anos de formação e acção políticas. Mas a sua “dissidência” é singular, tem um pressuposto “espiritual”, no sentido mais vasto que esta palavra adquiriu nalguns grandes autores do século XX (por exemplo, o Thomas Mann de A Montanha Mágica) e não apenas no sentido religioso. Lendo este texto testamentário que dá pelo nome de A Guerra de Samuel percebemos o investimento que Paulo Varela Gomes fez na literatura e o abandono de uma vida anterior.

Quando passamos para a segunda parte do livro, constituído por sete contos, entramos no mundo das construções narrativas que já nada devem ao ensaísmo. Agora, cultiva-se com perícia a prosa do conto e aquilo que se espera dele: os valores do encadeamento e da coesão que asseguram a continuidade do interesse narrativo. Paulo Varela Gomes mostra aqui muito bem que sabe mover-se com perícia no interior da técnica do conto e que sabe respeitar as convenções desse género narrativo. Na sua diversidade, estes contos têm em comum uma matéria ficcional que usa com frequência matéria das narrativas bíblicas, da Arca de Noé à história de Jonas engolido pela baleia. São histórias que se projectam sobre um fundo mítico, a-histórico, mesmo quando construídas em torno de factos tão contemporâneos como a world wide web, como acontece no conto chamado “Gnose” (e devemos observar, mais uma vez, que estamos aqui perante um conceito filosófico-religioso). A gnose como sinónimo de conhecimento foi na verdade o que Paulo Varela Gomes perseguiu no seu intensivo mergulho literário.

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