A exigência de Bon Iver sobreviveu à maior enchente do Primavera
O trovador intimista Bon Iver enfrentou a maior multidão de sempre do festival Nos Primavera Sound numa noite onde Angel Olsen, Nicolas Jaar, Skepta, Sleaford Mods ou Swans também brilharam.
Na noite de sexta havia duas grandes incógnitas no Nos Primavera Sound. Perceber como iria o público reagir ao espectáculo do americano Bon Iver – o grande chamariz do dia e talvez do cartaz desta edição – sabendo-se que era baseado no último álbum, no qual envereda por uma linha mais exploratória. E perceber como o próprio recinto, que tem sido elogiado ao longo dos anos, se iria comportar num dia de lotação esgotada.
Os números da organização apontam para os 30 mil espectadores em ocasiões de lotação esgotada, mas sem arriscarmos muito diríamos que foram mais esta sexta no Parque da Cidade do Porto. E o recinto comportou-se bem. Claro que existiram incómodas filas para casas de banho, alimentação e bebidas, em especial à hora de jantar, mas nada que tivesse provocado alteração no ambiente geral descontraído, pelo menos do que nos foi dado a ver. Porém, é nítido que o festival tem pela frente um desafio para os próximos anos, decorrente do seu próprio sucesso: como continuar a crescer de forma equilibrada e sustentada sem perder as senhas de identidade?
Essa é também a grande interrogação de artistas como Bon Iver. Como continuar a fazer o que se acredita, não prescindindo de desafiar-se a si próprio, sem perder o contacto com o público que o foi acompanhando. Na maior parte dos casos fica-se refém do êxito. Tenta-se agradar. Replicar o que já se fez. Não se promove a mudança. Não é o caso de Bon Iver. E só por isso seria sempre de respeitar alguém que, perante uma multidão que o idolatra – lá vimos Salvador Sobral, que o aponta como uma referência – não se fica pelo mero desfile de êxitos, é capaz de arriscar novos desígnios, exigente consigo próprio e respeitador do público. Nem todos terão a mesma perspectiva. Mas na noite do Porto ficou a ideia que grande parte das pessoas se sentiu satisfeita no final.
E como se esperava não foi um concerto facilitista, muito baseado em 22, A Million, o álbum de 2016, uma colecção de canções tão estranhas quando fascinantes, de retalhos, feitas na corda bamba entre o êxtase e o colapso. Um disco de vozes manipuladas, de camadas de saxofone, de estruturas não previsíveis e recheadas de subtilezas curvilíneas. Um disco que lança um novo mundo no seu percurso, traduzindo uma reacção aos mesmos círculos emocionais melancólicos que lhe deram fama. Esse Justin Vernon também esteve presente ao longo do espectáculo, mas viu-se mais um colectivo de músicos (entre duas baterias, metais, sintetizadores, baixo e guitarra), a misturar coisas, à procura de formas inesperadas e a gritar mais do que era usual – como na catarse final à beira da distorção, antes da interpretação solitária de Skinny love.
Foi um concerto digno, justo, exigente. De auscultadores, em frente ao sintetizador ou de guitarra Justin Vernon foi até expansivo com o público, elogiando a cidade e o festival antes de tocar 29 #Strafford APTS, e brincando quando o grupo falhou a entrada de uma canção, mas também não prescindindo de afirmar, não necessariamente por palavras, mas pela atitude desde o início, que a música, o estar ali, a comunhão, não tem que ser apenas um jogo de máscaras. Em determinada altura disse que iriam “tocar algumas do passado”, conhecedor de que parte do público é isso que deseja e lá se fizeram ouvir Holocene, Perth, Minnesota WI, Beach baby, Towers ou Calgary, mas esse trovador de intimidades, dores de coração e frustração perante as angústias com que a vida nos presenteia, está hoje diferente. A carga emocional é a mesma, mas existem mais contrastes, visível até no aparato cénico, e na forma como o colectivo dá corpo a canções folk, a momentos de epopeia rock e a paragens de experimentação digital, tudo misturado por vezes no seio de uma só canção, num desejo de risco que se enaltece.
No final havia muita gente a dizer que teria sido um concerto diferente num espaço fechado e mais pequeno. Claro que sim. Mas essa é uma apreciação que não vale a pena fazer. As condições eram aquelas. Artista e público sabiam-no. Bon Iver parece hoje menos interessado em perder tempo com os sintomas do sucesso – às tantas, disse mesmo “tentem o mais possível não morrer”, pensando também nele – e mais numa relação íntegra consigo próprio. Equilíbrio difícil, mas não impossível, como se ouviu.
Foi um dia de escolhas dificeis pela sobreposição de concertos. Bon Iver ou Swans? Skepta ou Hamilton Leithauser? Nicolas Jaar ou King Gizzard & The Lizard Wizard? Optámos por quem temos visto menos ao vivo, sem deixar de ver um pouco dos outros. Vimos o início e o fim dos Swans e não custa nada acreditar que tenha sido um concerto magnífico, como tantos outros que já lhes vimos, misto de catarse ruidosa e precisão virtuosa, com grandes crescendos de intensidade emocional. Diz-se que terá sido um concerto de despedida, não dos Swans, mas desta formação. Vão deixar saudades.
Em estreia em Portugal apresentou-se o britânico Skepta, figura maior do grime, linguagem de rua londrina que tem conhecido um renovado destaque nos últimos tempos. Na companhia de um DJ, e mais tarde de outros cúmplices vocais, mostrou porque tem sido falado no último ano – ganhou o importante Mercury Prize em Inglaterra – com uma música de impacto físico que em alguns momentos se pode confundir com as vertentes mais electrónicas do hip-hop, com o som dos graves em grande comunhão com a fluidez vocal. Nas primeiras filas celebrou-se em grande, com muito público internacional a dançar – entre ele, o cantor Sampha, que entra este sábado em acção – e a cantar em uníssono os refrões dos temas mais conhecidos. Ou seja, mais um sintoma de que algumas sonoridades urbanas, como já acontecera na véspera com Run The Jewels e Flying Lotus, encontraram o seu espaço nesta edição.
O mesmo se aplicando às sonoridades dançantes. Se na quinta tinha havido Justice, ontem foi a vez de Nicolas Jaar, no palco principal, e mais tarde, noite fora, o canadiano Richie Hawtin, na tenda Pitchfork. Ao contrário dos franceses, que apostam na imediatez, ao nível da potência sonora e do impacto cénico, o americano Jaar opta por ir construindo e desenvolvendo os seus temas de cariz electrónico. O resultado é mais rico e luxuriante. Os custos são uma maior dispersão do público, principalmente quando abordou os temas menos óbvios do último álbum, Sirens. Mas ainda assim, sozinho, rodeado de teclados, por vezes fazendo uso de voz processada digitalmente, e herdando a multidão que ouvira antes Bon Iver, conseguiu seduzir, partindo de sonoridades house para encontrar equilíbrio entre reduções rítmicas, definições ambientais ou resquícios de jazz, movimentando-se de forma tranquila e com à vontade por entre todos esses territórios. No final não esquece as raízes chilenas e canta No, a sua versão da cumbia sul-americana, num tom pausado, quase melancólico, sem perder o balanço rítmico.
O final de tarde, como é norma, havia sido mais tranquilo. Os americanos Whitney já têm algum culto, embora nem sempre seja perceptível ao vivo o porquê do mesmo. Aquilo que em disco acaba por ter algum charme, um rock envolvente com muitas alusões nostálgicas aos anos 1970 – uma constante do dia, dos Pond aos King Gizzard & The Lizard Wizard – acaba por em palco dissolver-se sem nenhum rasgo luminoso. Assim, a dupla, reforçada por mais três músicos, deu apenas um concerto simpático.
Nada cavalheiros, pelo contrário, saudavelmente rufiões, de costas viradas para a constância dos dias, são os excelentes Sleaford Mods. A sua música é repetitiva, não querem saber de dispositivos cenográficos – dois homens em palco, um canta e vocifera e o outro carrega no play do computador e bebe cerveja – e as letras, nem sempre compreensíveis diga-se, falam do lado desumano do capitalismo tardio dos nossos dias.
São tudo aquilo que as convenções nos dizem que não devem ser. E no entanto tudo funciona ali. Há nervo, verdade e, por paradoxal que seja, sentido de espectáculo. Ingleses até ao tutano não podiam deixar em claro a vitória eleitoral dos conservadores. “Um dia mau para a Inglaterra, um dia bom para o Porto”, ironizaram, antes de Andrew Fern voltar a carregar no play e Jason Williams lançar mais palavras zangadas. Ou lúcidas, quando disse: “estão a ouvir o som que vem daqui de trás?”, numa alusão ao palco mais próximo onde tocavam os Teenage Fanclub. “Estão atrás de nós – no passado.”
É isso. Do concerto dos Teenage Fanclub não rezará a história deste Primavera. O mesmo não se podendo dizer de Angel Olsen. Não foi a melhor prestação que vimos à americana, mas acompanhada por uma banda, todos impecavelmente vestidos à anos 60, acabou por conquistar seja quando abordou temas rock mais dolentes, ou quando enveredou por linhas menos electrizantes, num registo mais recatado, com a sua voz a erguer-se com intensidade ao final da tarde de sexta, o dia em que o recinto do parque da cidade registou a maior enchente deste festival.
Este sábado, com Aphex Twin, Elza Soares, Sampha, Death Grips ou Black Angels é provável que não seja muito diferente.