A “arma fumegante” invisível do machismo
Não acredito que a demonstração factual da violência de género a faça desaparecer. A violência de género não existe por ignorância — existe enquanto sistema de alocação diferenciada de poder, de estatuto. As provas podem ser — e são — infindas. Mas as provas — e o pedir provas — funcionam como distracção
Marisa Matias (MM) viu-se recentemente numa situação não muito diferente de outras em que também já estive: estar numa escola e falar com estudantes sobre discriminação de género, sobre violência. Embora a área de acção e a experiência que MM partilhou nas redes sociais tenha que ver com a política formal — ramo do qual estou totalmente arredado — essa semelhança pontual levou-me a reflectir sobre o quão comum é aquele episódio.
Dito de outra forma: quando se fala de violência de género, uma das primeiras coisas que nos pedem são “provas”. Como professor, devo dizer que nada tenho contra uma mente inquisitiva, independentemente da idade e do tema. Valorizo muito perguntas, espírito crítico, e uma atitude que não toma algo como verdadeiro só porque alguém o diz. Sem isso não haveria investigação, não haveria academia. Por conseguinte, nada tenho contra o jovem que interpelou MM, nem nada contra a pergunta que lhe fez, ou sequer contra o ter feito uma pergunta relevante.
Não posso, pese o acima, é deixar de notar que existem co-incidências infindas entre essa experiência de MM e a minha própria experiência de fazer essas acções de sensibilização, ou entre estas experiências e aquilo que me relatam constantemente várias amigas, ou entre isso e as pequenas interacções que vejo em variados contextos. Essas co-incidências (assim mesmo, com hífen) não são obra do acaso. Essas co-incidências — tal como a pergunta do jovem colocada a MM — surgem de uma cultura da suspeição, de uma cultura da normalização das desigualdades estruturais, que não suporta pensar-se a si mesma como sendo de facto desigual.
Esta alegada preocupação com "os factos" da desigualdade de género não vem de uma vontade de conhecer mais aprofundadamente a realidade, ou de uma honesta (e compreensível) ignorância que rapidamente se pode sanar. Esta pergunta (não a pergunta aqui-e-agora feita pelo jovem a MM, mas o espírito da pergunta!) faz parte de um programa político e cultural de ocultação dos processos de supremacia masculinista.
E daí esta coisa que só pode gerar perplexidade: algo tão comum na nossa sociedade como a desigualdade de género, tão presente e tão profundo, está constantemente a ser convocado a prestar provas da sua existência. De tanto vermos desigualdade e violência de género, deixamos de a ver, recebemos uma pedagogia constante para a invisibilidade: na omnipresença, o apagamento.
Relatórios, propostas de lei, notícias, teses, tratados – todos tendem a começar pelas provas. "Aqui está", gritamos, "a veracidade do assunto que iremos tratar em seguida". Um pouco como se cada astrónomo tivesse de iniciar um trabalho académico refutando a teoria geocêntrica no século XXI.
Os astrónomos não o fazem. Porém, continua a ser frequente que isso seja feito no campo da desigualdade de género – um ritual que responde ao apagamento sistémico do machismo. Eu faço-o também. Só que aqui se esconde outra armadilha, pérfida, desse mesmo machismo: continuamos a deixar que nos ditem os termos do nosso trabalho. Eve Segdwick chamou a esta abordagem de “paranóica” — uma das suas características é colocar imensa fé na exposição dos factos.
Infelizmente, não acredito que a demonstração factual da violência de género a faça desaparecer. A violência de género não existe por ignorância — existe enquanto sistema de alocação diferenciada de poder, de estatuto. As provas podem ser — e são — infindas. Mas as provas — e o pedir provas — funcionam como distracção, que permite ao machismo isentar-se de responsabilidades "até prova em contrário", que lhe permite furtar-se à prática de empatia na política e, já agora, continuar a educar jovens rapazes para serem cegos à violência que os rodeia todos os dias, todo o dia.
Vamos falar sobre sexismo? 'Quer trepar no galinheiro', 'depravada', 'vaca', 'agarrada', 'drogada', 'lsbica' e '...
Posted by Marisa Matias on Tuesday, 6 June 2017