É (ainda) a independência que aquece as legislativas na Escócia
Ostracizados durante 17 anos, conservadores esperam capitalizar oposição ao novo referendo exigido pelos nacionalistas. SNP insiste que o "Brexit" mudou realidade e uma nova vitória nestas eleições torna consulta ainda mais inevitável.
As nuvens começam a ameaçar a manhã de sol quando Tommy Sheppard chega à rua principal de Portobello, cidade costeira nos arredores de Edimburgo, para o arranque de um dos derradeiros dias de campanha para as eleições britânicas. O até agora deputado – e candidato à reeleição – pelo Partido Nacional Escocês (SNP) está confiante. "Se toda a gente que diz que me apoia votar em mim a vitória está garantida", diz, em tom bem-humorado, à eleitora que quer saber como estão a correr as coisas. Ao PÚBLICO, depois de mais de duas horas a bater às portas, mostra-se mais contido, mas explica que o seu objectivo é aumentar os 49% de votos que obteve nas últimas legislativas, em 2015.
Essas foram as eleições em que os nacionalistas conseguiram o que parecia impossível: eleger 56 dos 59 deputados reservados à Escócia no Parlamento de Westminster, capturando ao Partido Trabalhista 40 dos 41 parlamentares que detinha naquele que era há décadas um dos seus maiores e mais importantes bastiões no país. A sorte dos conservadores de David Cameron foi idêntica à de todos os seus antecessores desde 1997, elegendo apenas um deputado "a norte da fronteira", como ingleses e escoceses continuam a referir-se à delimitação geográfica entre as duas maiores nações que compõem o Reino Unido.
Mas depois disso aconteceu o "Brexit" e o sismo que a decisão provocou na política britânica sentiu-se ainda com maior intensidade na Escócia que, ao contrário de Inglaterra, votou a favor da permanência na União Europeia. Razão mais do que suficiente para justificar um novo referendo à independência, insiste Nicola Sturgeon, a líder do governo autónomo e do SNP, afirmando que a maioria dos escoceses não só não quer sair da UE como recusa a política anti-imigração ou a exclusão do mercado único europeu propostas pela primeira-ministra britânica, Theresa May.
Na apresentação do programa do partido, na semana passada, Sturgeon admitiu que o referendo não acontecerá antes de 2019, mas diz que uma nova vitória do SNP na Escócia, como tudo indica, impedirá May de continuar a rejeitar uma nova consulta. "O ‘Brexit’ mudou tudo. Aquilo que ficou acordado [no referendo] 2014 deixou de estar em cima da mesa", concorda Sheppard, nascido na Irlanda do Norte e que, apesar de "nunca ter sido um fã do Reino Unido", acredita que a saída da UE "deixará o país irreconhecível".
As sondagens não sugerem, no entanto, que o apoio à independência tenha aumentado em consequência do "Brexit". E essa é a arma que o Partido Conservador escocês, sob a batuta da enérgica Ruth Davidson, está a usar para conquistar os votos dos que não querem ouvir falar de um novo referendo, cimentando aquilo que é já descrito como o renascimento dos tories na Escócia. "Quando dissemos não, estávamos a falar a sério", é o slogan da campanha dos conservadores escoceses que, admitem as sondagens, podem eleger na próxima quinta-feira até uma dezena de deputados.
"Os tories vão ficar bastante atrás do SNP, mas vão conseguir o melhor resultado em 25 anos na Escócia, talvez mesmo em 30 anos", explica ao PÚBLICO Gerry Hassan, escritor e comentador da política escocesa, sublinhando que "a eleição de mais de seis deputados seria um grande feito, depois 17 anos em que estiveram quase ausentes da política escocesa" e que era difícil encontrar quem admitisse que apoiava os conservadores.
"Não sou menos escocês"
"Foi mais fácil assumir-me como gay do que como conservadora", costuma ironizar Davidson, antiga jornalista e militar que chegou à chefia do partido em 2011, mas que só se tornou verdadeiramente popular quando se assumiu como uma das vozes mais aguerridas na campanha contra o "Brexit", em 2016. "Ela não se assemelha à imagem tradicional de um líder conservador", confirma Alan Convery, professor da Universidade de Edimburgo e autor de vários estudos sobre conservadores na Escócia e País de Gales.
Diz, no entanto, que o renascimento do partido se deve sobretudo ao facto de os conservadores "terem sido muito claros em relação à recusa de um novo referendo", ao passo que a posição dos trabalhistas "tem sido vaga e contraditória sobre esta matéria". "Eles são vistos como o partido unionista fiável", acrescenta.
Em Edimburgo, que em 2014 votou 61% contra a independência e onde os conservadores acreditam que podem eleger pelo menos um deputado, ainda é difícil ver cartazes colados nas janelas a anunciar um voto no partido de May. Mas nas conversas de rua há quem admita que já não pode ouvir falar de um novo referendo e diga que votar de forma táctica para negar ao SNP uma votação próxima da que obteve em 2015.
"Vou votar em qualquer um menos neles", afirma, convicto Ian Iatkin, de 70 anos, que foi com a mulher ao festival que durante o fim-de-semana encheu o parque Meadows, no centro da capital escocesa. Diz que nas últimas legislativas até votou nos nacionalistas, mesmo não tendo apoiado a independência, por achar que eram os que melhor oposição fariam ao governo de Cameron. "Mas eles só falam de independência, independência, não querem saber de mais nada, não governam". E ele, que tradicionalmente votava nos trabalhistas e "nunca na vida" votou nos conservadores admite fazê-lo pela primeira vez, "como forma de protesto contra o SNP". Não gosta de May, e menos ainda da viragem à esquerda do Labour sob a chefia de Jeremy Corbyn, mas não suporta a retórica dos nacionalistas. "Eu sou escocês em primeiro lugar e britânico em segundo. Não gosto que me digam que não sou escocês só porque não apoio a independência", afirma, garantindo que não está sozinho: "No pub a que vou, toda a gente da minha idade pensa mesmo".
"Nestas eleições, mais ainda do que nas últimas, há muitos eleitores trabalhistas a mudar para os conservadores", confirma Gerry Hassan, sublinhando que manter a questão da independência no centro do debate político serve tanto os tories como o SNP, "porque permite aos dois dominar a política escocesa". Diz também que, quase três décadas depois da saída de cena de Margaret Thatcher – a primeira-ministra que deixou uma marca indelével na Escócia com políticas económicas que conduziram à desindustrialização e a taxas de desemprego recorde – "não é possível continuar a rotular os conservadores como um partido sinistro e anti-escocês, como o SNP insiste em fazer".
Tudo menos os conservadores
"Certamente não vou votar nos tories", responde uma jovem moradora num bloco de apartamentos em Inchview Terrace, a rua que Tommy Sheppards anda a bater para perceber quantos dos eleitores que contactou nas últimas legislativas estão a pensar votar novamente nele. Muitos moradores estão fora, alguns assumem que votarão noutro partido e outros mostram-se indecisos. Mas no final, mais de metade dos que abriram a porta ao candidato promete apoiá-lo nas urnas. Vários eleitores abordam-no também na rua para lhe dar o seu apoio. Afinal Edimburgo Leste, o círculo que engloba Portobello e pelo qual Sheppards concorre, é uma das zonas mais nacionalistas da região.
"Vou votar no SNP", assegura James Port, sentado à espera do autocarro na rua principal da cidade, afirmando que, ao contrário do que May e os conservadores asseguram, "a questão da independência não ficou decidida em 2014". "Nunca ficará até a conseguirmos. É uma coisa que está entranhada em nós", afirma, acrescentando que, ao contrário da maioria dos escoceses "nunca se sentiu britânico". "Nem sei o que isso é".
Tal como Sturgeon, Port acredita que o resultado das negociações para a saída do Reino Unido da EU – "uma decisão desastrosa" – acabará por convencer os escoceses da inevitabilidade de um segundo referendo e da independência. "Pode não acontecer nos próximos cinco anos, mas as pessoas acabarão por perceber o mal que dali virá".
Alan Convery admite que o apoio à independência pode aumentar "se as negociações do ‘Brexit’ correrem mal e o acordo final for visto como mau para o país". "Nesse cenário, a Escócia pode olhar para a independência como uma alternativa credível e assistiremos a uma grande mudança no eleitorado. Mas isso ainda não aconteceu", diz o professor de Ciência Política, sublinhando que se nestas eleições os conservadores conquistarem um número significativo de deputados, May pode "dizer que o apetite pela independência diminuiu e continuar a adiar o referendo".
Sheppard rejeita esta interpretação, sublinhando que, mesmo que o SNP perca alguns deputados, continuará a ser, "de longe e por qualquer medida", o vencedor das eleições na Escócia. E a exigência de um novo referendo, diz, sairá reforçada.