No labirinto patafísico de Mattia Denisse
Em Duplo Vê na Galeria Zé dos Bois Mattia Denisse evoca histórias, mitos e mundivisões para dar a ver um mundo absurdo, dessincronizado e fascinante. Com desenhos e palavras alimentadas pela imaginação e por um irresolúvel desencontro entre a representação e a realidade.
Um mergulhador num escafandro, um homem caído de um cavalo, o torso nu de uma mulher, um esqueleto fumador. Estes são algumas figuras do “bestiário” patafísico que povoa a exposição Duplo Vê, de Mattia Denisse (França, 1967), na Galeria Zé dos Bois. Não é a primeira vez que são apresentadas ao público. Há menos de um ano estiveram na Casa das Histórias Paula Rego, em Cascais numa selecção de 250 desenhos, com a curadoria de Catarina Alfaro.
Na ZDB, contudo, será pertinente dizer que ganham outro significado: assinalam o regresso do artista francês à casa onde desenvolveu um parte importante do seu percurso expositivo, e na qual forjou amizades e cumplicidades, e permitem aos visitantes uma experiência mais concentrada e envolvente dos trabalhos.
Logo numa das mesas, vêem-se desenhados sobre papel olhos estrábicos. O humor instala-se a par de alguma perplexidade. Há também o desenho do que parece ser uma sessão colectiva de estudo em torno de volumes geométricos e um outro de um inusitado globo no interior de um cubo. Noutra mesa, sucedem-se esboços de uma orgia e, enuncia o título, o quarto nupcial de um anti-globo. Os títulos e as notas escritas acodem ao absurdo das situações representadas que se multiplicam noutras mesas. E para dar sentido ao que vê, o espectador tem que se deter, paciente, na expectativa de poder reconstruir uma narrativa ou de dar uma unidade aos desenhos. É escusado procurar sequência ou forçar uma lógica. Duplo Vê é feito de elipses, de detalhes, de personagens que se repetem ou reaparecem como duplos, enigmas que remetem para a literatura ou para alquimia.
Mattia Denisse, que acabou de entrar na galeria lisboeta para falar com o Ípsilon, avança como uma génese possível do trabalho: “Uma das histórias que está na base da exposição chama-se Ensaio sobre o estrabismo de Deus. Tem a ver com um atavismo inerente ao homem, que consiste em querer ver sempre mais do que há. Podia ser interpretado como uma deformação original da visão de Deus, um estrabismo divino divergente, que, de uma certa forma, dessincronizou a realidade. Daí a impossibilidade de coincidirmos com ela”.
Um pessimismo alegre
Dessa impossibilidade partem os desenhos como obras de imaginação, estendendo-se em narrativas ou caminhos paralelos. “Parto sempre de uma ideia de histórias paralelas que se vão contaminando. Não se chegam a misturar, mas há coisas que se repetem, continuações, lembranças, desenhos que coexistem”. Ao longo da exposição vão aparecendo alusões a narrativas: a história do anti-globo, a história fantástica do mergulho, a história universal dos corredores ou o mito indígena de Macunaíma. Tradições literárias, religiosas, históricas e antropológicas confluem para um ficcionar desconcertante sobre a criação do mundo, o aparecimento do pecado original, a distinção entre o homem e a divindade ou a impossibilidade de representar a realidade.
São assuntos sérios abordados com o humor da Patafísica: “Uma disciplina que não se toma a sério”, diz Mattia Denisse. “É uma forma de apreensão do mundo que justamente o aceita como lugar absurdo e ri-se disso com um pessimismo alegre”. A materializar este gosto pela Patafísica, “ciência do particular e da excepção ou das soluções imaginárias”, concebida por Alfred Jarry e que daria origem, em 1948, a uma instituição, Le Collège de 'Pataphysique, à volta do qual se reuniriam autores como Boris Vian ou Julien Torma.
“Até ao século XVIII não havia ainda uma separação definitiva entre a religião, a magia e a ciência. A ciência não estava muito preocupada em provar teoria ou conjecturas, e a imaginação não era marginalizada. É por isso que gosto muito da Patafísica, na qual a imaginação prevalece sobre tudo o resto, sobre todas as outras maneiras de pensar”. É então que Mattia Denisse se debruça sobre uma mesa e aponta para um desenho inspirado em A Origem do Mundo, de Gustave Courbert: “Mas ao mesmo tempo não conseguimos imaginar a partir do nada. Por exemplo, nenhuma obra de ficção científica consegue inventar algo totalmente diferente”.
Há quase 18 anos que Mattia Denisse reside e trabalha em Lisboa. Em 2000 fez a sua primeira exposição individual na galeria Zé dos Bois, à qual se seguiu, em 2001, uma residência e nova exposição num dos edifícios das Tercenas do Marquês. De projecto em projecto, foi ficando por cá sem razões tangíveis ou motivos aparentes, mas certamente inspirado em sentimentos, pensamentos, aspirações e uma concepção particular de vida. Foi também aqui que fez novos amigos.
A designer Sofia Gonçalves e o escritor Rui Paiva (da Dois Dias edições, que publicará brevemente o livro Duplo Vê), a dupla João Gusmão e Pedro Paiva, António Gomes Silveira, Alexandre Estrela, Gonçalo Pena, Eduardo Matos, entre outros. O que o aproxima destes artistas? “Talvez uma certa ideia do que é a arte: uma experiência estética que não se limita a ilustrar uma ideia, que a transcende”, responde. “Mas se calhar eles não concordam [risos]. De qualquer forma, são sempre obras que não se sujeitam a uma catalogação, não se resumem em poucas palavras. Abrem portas que abrem portas e, nesta sucessividade, escapam ao reducionismo. Exigem uma certa disponibilidade, um tempo e uma atenção particulares ao espectador”.
Entre a ideia e a representação
É por meio dessa atenção que se descobre, por exemplo, os diferentes tipos de desenho que compõem a exposição. Há desenhos feitos a carvão, a lápis de cor, a lápis de cera, a pastel. Há desenhos artísticos e científicos, esquemáticos e arquitecturais. Há diagramas. “Todos os tipos de desenho podem ser aproveitados”, considera Mattia Denisse. “Sempre me agradou, por exemplo, o lado gráfico dos diagramas, gosto de os fazer. Requerem um trabalho minucioso, reproduzem uma realidade e convocam um jogo de pensamento diferente. A preocupação em resumir é maior, a sua execução é mais rápida”.
Identificar estas diferenças ou imagens provenientes da História da Arte, que emergem transfiguradas aqui e ali, torna-se um exercício irrecusável. Expostos nas mesas, os desenhos permitem comparações, analogias, ligações. Uma relação mais próxima, menos hierarquizada. “Gosto de mostrar os desenhos como os faço, e que as pessoas não só vejam, mas que também leiam o desenho, que encontrem um sentido narrativo. Também me interessa a objectualização dos desenhos, a sua concretude material, presente nas folhas de papel”.
Entre o desenho e a escrita, reificada em notas sobre o papel, surge entretanto um parentesco. “Os dois são da mesma família, pertencem ao mesmo conjunto”, comenta o artista. “Evocam a distância mais curta entre a ideia e a sua representação, o que me lembra a definição que a Patafísica tem de Deus. A distância mais curta entre zero e o infinito. Mas sobretudo no caso do desenho, que foi a maneira que encontrei para contar histórias sem ter de as contar. E foi dessa narrativa imaginal que, como uma protuberância, cresceu a escrita”.
Na última sala também há desenhos na parede. Foram realizados para o livro que está no prelo, e correspondem a esquemas feitos a partir dos desenhos originais que se encontram nas mesas. O objectivo é que as pessoas possam reemergir (como se depois de um mergulho) e, num processo rememoração, recordar os desenhos que ficaram para trás e as histórias a que eles aludiam. Porventura, essa será também a melhor condição para reflectir sobre os mitos, os sentidos e as narrativas que Mattia Denisse inventou ou recolheu nas suas leituras de literatura, antropologia ou do misticismo judaico ou no seu conhecimento da pintura ou da ilustração científica. Não se pense contudo que a interpretação será fácil ou que se atingirá algum tipo de esclarecimento. Apesar da pluralidade de desenhos e de modos de desenhar permanece a dúvida sobre a representação e o conhecimento da realidade. “A incoincidência torna impossível a representação. Resta-nos multiplicar os pontos de vista sobre o mesmo, até à saturação. É uma tautologia paradoxal, que nunca acerta com o seu objecto. Mas isso não impede que a imaginação seja uma forma válida de conhecimento”