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Auditoria revela buraco de 193 mil euros na Junta de Freguesia da Foz do Arelho

Relatório aponta "fortes indícios" de fraudes contabilísticas, crimes tributários, apropriação indevida de dinheiro e peculato. Documento segue para o Ministério Público.

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sara matos / PUBLICO

Porque motivo uma junta de freguesia paga despesas em fraldas, óculos, bebidas alcoólicas, telemóveis? E porque paga combustíveis a funcionários, familiares de elementos da junta e a pessoas exteriores à autarquia?

Estas são algumas das perguntas que o presidente da junta da Foz do Arelho, Fernando Sousa (eleito pelo MVC - Movimento Viver o Concelho), não soube responder quando questionado pelo presidente da Assembleia de Freguesia, Artur Correia (PSD), com base no resultado de uma auditoria às contas da autarquia entre 2013 e 2016, e cujas conclusões foram reveladas este sábado, 3 de Junho.

Mas estes são apenas pormenores caricatos do escândalo que corre na freguesia e no concelho das Caldas da Rainha, depois de revelado no mesmo relatório que “há um desvio potencial apurado de 192.842,07 euros”. Um buraco seis vezes superior ao que se pensava, mas que pode ainda ser maior porque há receitas do parque de estacionamento e do parque de autocaravanas que a Junta explora junto à praia (e que rendem milhares de euros por mês, sobretudo nos meses de Verão) que não entraram nas contas da freguesia.

O relatório alega ainda que existem "fortes indícios" da prática de fraudes contabilísticas, crimes tributários, apropriação indevida de dinheiros e uso de dinheiros públicos para fins particulares.

Um dos aspectos mais delicados tem a ver com a emissão de 1200 cheques da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo das Caldas da Rainha (muito mais do que os usados nos mandatos anteriores) alguns ao portador e outros sem que se saiba qual o seu destino. Foram ainda identificados 97 cheques sem cobertura que custaram à Junta, em encargos e comissões, mais de 3000 euros. A auditoria identificou também uma situação que classificou de “preocupante”: um funcionário exterior ao executivo, que obviamente não está autorizado a assinar cheques, assinou um que foi levantado, sem problemas, na Caixa Agrícola, a qual não confirmou a sua veracidade.

Fernando Sousa, presidente da Junta, e Maria dos Anjos, que é simultaneamente membro eleito do executivo e funcionária da freguesia,  terão levantado cheques cujo destino se desconhece, é alegado no relatório, não havendo quaisquer registos do rasto do dinheiro.  Pelo que o auditor propõe que estes devolvam à autarquia, respectivamente, 8,5 mil e 20 mil euros.

No entanto, o montante que ambos deverão repôr é superior, porque a auditoria refere que o presidente não tem suporte legal para ter recebido vencimento a meio termo, nem subsídio de refeição. Por sua vez, Maria dos Anjos não tinha direito a subsídio de compensação. Um e outra estarão em dívida com, respectivamente, 26.600 euros e 28 mil euros.

O valor devido aos cofres da Junta de Freguesia não deve ficar por aí. Entre IVA a pagar ao Estado, despesas em combustíveis e refeições sem número de contribuinte e sem justificação, despesas pagas indevidamente, pagamentos a colaboradores sem factura nem recibo, e reparação de viaturas sem suporte legal, todos os elementos do executivo, de forma solidária, estão em dívida com um montante de 56 mil euros, é defendido no relatório.

Há mais. A Junta tem “incrustada” nela própria a Associação Para o Turismo e Desenvolvimento da Foz do Arelho, que tem sede no edifício da autarquia, usa o mesmo cofre e tem os mesmos presidente e vice-presidente. A associação presta serviços à freguesia e funciona como uma “segunda junta” porque desde há anos que autarquia vive sob a ameaça de penhoras na sequência de um processo judicial interposto por uma família local, que reivindica a posse de terrenos que alegadamente serão seus e não públicos.

O relatório alega que foram transferidos indevidamente da Junta para a associação 80.800 euros, sem quaisquer justificações, pelo que o executivo é também responsável pela devolução desse montante.

É ainda referido a utilização da viatura da freguesia para uso particular do seu presidente, inclusivamente no transporte de materiais aquando do casamento da sua filha, bem como reparações e pagamento de combustíveis para carros de pessoas exteriores à autarquia.

O parque de estacionamento e o parque de autocaravanas, a poucos metros da praia, têm constituído uma autêntica galinha dos ovos de ouro para a Junta da Foz do Arelho. Entre 2013 e 2016 proporcionaram receitas – contabilizadas – de 43 mil e 111 mil euros, respectivamente. Mas a auditoria indicia que as receitas poderão ser maiores, porque o sistema de controlo interno que existia do mandato anterior foi desmantelado por indicação do presidente da Junta. De resto, foram descobertas irregularidades na arrecadação das receitas, as quais, por diversas vezes, foram feitas pelo próprio presidente da Junta com a sua esposa.

Os indícios de favorecimento da família estendem-se também à emissão de cheques e pagamento em numerário à mulher e à filha do presidente da Junta, “configurando logo um impedimento, ou seja, um acto nulo” de acordo com o Código de Processamento Administrativo.

O documento relata ainda histórias recambolescas do apagamento, por duas vezes, de dados informáticos no programa de contabilidade da Junta sem que tivesse sido possível recuperar os ficheiros. Actualmente, a autarquia já vai no terceiro programa informático e também no terceiro tesoureiro, porque dois demitiram-se por discordarem da forma como o presidente geria as contas.

As conclusões do relatório da auditoria - adjudicada ao consultor Filipe Mateus por 2500 euros - foram apresentadas na assembleia de freguesia extraordinária realizada neste sábado, tendo os membros do executivo recebido, horas depois, por correio electrónico, a totalidade do documento de 127 páginas. A sessão decorreu num ambiente pesado, com silêncios prolongados e com elementos do público e do executivo em estado de choque.

A contundência das conclusões levou, porém, a que logo ali fossem tomadas decisões: o relatório segue para o Ministério Público, as pastas com a documentação em posse do auditor seguem também para o tribunal e não voltam para a Junta para não desaparecerem. Será feita uma auditoria também ao ano de 2017 e uma outra às contas da associação que tem recebido transferências da Junta. Tudo aprovado por unanimidade com dois votos do PSD, um do CDS/PP, um do PS e quatro do MVC, o movimento que elegeu Fernando Sousa e de quem os seus elementos agora se demarcam.

Na esfera política , foi também aprovado por unanimidade uma moção de censura ao executivo.

O presidente da Junta diz-se de “consciência tranquila”. E instigou a que o processo siga para o Ministério Público, até porque ele próprio, disse, já apresentou queixa contra a funcionária da autarquia (e também eleita), Maria dos Anjos, pelo uso indevido de cheques. Esta última, presente na reunião, não quis prestar declarações, tendo apenas admitido que recebera um cheque de 3000 euros a título de empréstimo e que devolvera o dinheiro.

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