Falhas do fisco aumentam risco de prescrição de dívidas ao Estado

Serviços de finanças usam critérios diferentes para contar prazos. Há processos abertos com atraso, comprometendo a cobrança. Representante dos inspectores diz que nada mudou no último ano.

Foto
Uma dívida ao fisco prescreve, regra geral, ao fim de oito anos Rui Gaudêncio

A forma como a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) faz o acompanhamento dos processos de contra-ordenações fiscais apresenta “fragilidades e insuficiências” em várias dimensões, desde a falta de interligação entre os sistemas informáticos ao facto de os próprios serviços terem entendimentos diferentes em relação à contagem dos prazos de prescrição.

As falhas foram identificadas pela Inspecção-geral de Finanças (IGF) numa auditoria já concluída há um ano, mas que só há poucas semanas foi tornada pública por esta entidade. O diagnóstico refere-se aos anos de 2012 a 2014, mas desde que a auditoria terminou nada mudou nos procedimentos internos relativamente ao sistema de contra-ordenações, denuncia o presidente da Associação Sindical dos Profissionais da Inspecção Tributária e Aduaneira (APIT), Nuno Barroso.

As deficiências encontradas, conclui a IGF na auditoria, têm consequências na tramitação dos processos e, em alguns casos, podem aumentar o risco de prescrição das dívidas, comprometendo a própria arrecadação de receitas para os cofres do Estado.

Uma das críticas tem a ver com o facto de o fisco não ter procedimentos uniformizados, nem a nível central, nem a nível regional e local. Um exemplo: nos serviços de finanças há entendimentos diferentes em relação aos “prazos de prescrição aplicáveis e na respectiva forma de contagem, nomeadamente nas suspensões por recurso judicial”. E não havendo simetria nas regras, isso tem consequências na forma como os processos são tramitados e na própria cobrança.

Uma das recomendações da IGF passa por fazer um controlo periódico dos casos pendentes, envolvendo neste trabalho “todas as direcções de Finanças, tendo por base níveis de risco e materialidade e considerando toda a informação” que aparece no sistema informático. No último relatório de combate à fraude, o Governo lembrava que “a data da prescrição de uma dívida actualmente ocorre, regra geral, oito anos após o ano em que se produziu o facto gerador da obrigação de imposto, ressalvadas que sejam as causas de suspensão e interrupção do prazo legal”.

A inspecção encontrou, na altura, 120 processos em “elevado risco” de prescrição. Uma das razões tinha a ver com o facto de os processos serem instaurados tardiamente; noutros casos, com “elevados períodos de pendência sem tramitação, suspensões indevidas e apresentação de recursos judiciais”. Ora, a IGF propõe que o fisco elabore instruções administrativas para que não restem dúvidas de interpretação tanto relativamente aos prazos de prescrições, como aos procedimentos que devem ser seguidos na execução das coimas. E outra recomendação: criar um plano para monitorizar periodicamente as pendências, envolvendo todas as Direcções de Finanças, e olhando para os “níveis de risco e materialidade” dos processos.

O Ministério das Finanças mantém-se em silêncio sobre esta auditoria, também já noticiada pelo Jornal Económico. O gabinete do secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Fernando Rocha Andrade, não respondeu ao PÚBLICO quando questionado se o fisco já tomou medidas concretas na sequência das recomendações da IGF ou se tem em marcha instruções administrativas para melhorar os procedimentos. Ficava a dúvida. Mas o presidente da APIT, Nuno Barroso, garante que tudo se mantém igual desde há um ano, sem mudanças no sistema de contra-ordenações.

O que o Governo apresentou recentemente foi uma proposta de lei, incluída no pacote de medidas do programa Capitalizar, para dar à Unidade dos Grandes Contribuintes (UGC) competências de execução fiscal que até agora estavam concentradas nos serviços locais. Ao mesmo tempo, haverá maior flexibilidade interna para que as direcções regionais da AT possam retirar competências em matéria de processo executivo a alguns serviços de finanças mais pequenos, passando a concentrar em si essas funções.

Quando o fisco perde

A auditoria da IGF não se centrou no processo legislativo, mas nos procedimentos internos. E o retrato é crítico para a AT, ao concluir-se que o fisco não faz uma recolha centralizada das decisões judiciais quando estas são favoráveis aos contribuintes. Se o fizesse, entende, isso permitiria “identificar as causas de maior litigância, bem como as principais causas das decisões desfavoráveis à AT”.

Para Nuno Barroso, da APIT, as conclusões “apenas poderão surpreender quem não trabalha na AT”. Observações sobre a uniformização de procedimentos e entendimentos ao nível das contra-ordenações fiscais e dos processos criminais fiscais “não têm tido qualquer eco”, critica.

No final de 2015, empresas e contribuintes singulares deviam ao fisco mais de 18.600 milhões de euros, segundo a última Conta Geral do Estado. Daquele montante, cerca de 7200 milhões eram dívida activa (considerada tramitável); 8300 milhões referiam-se a dívida suspensa (considerada não tramitável) e os restantes 3100 milhões eram já dívida dada como incobrável. Quanto à dívida prescrita, os valores do fisco desse ano apontam para quase 1200 milhões.

Sugerir correcção
Ler 3 comentários