Os fins do internacionalismo?
As reflexões e o estudo do historiador Mark Mazower sobre as várias formas imaginadas, umas executadas outras não, de coordenação e cooperação internacional nos últimos dois séculos. Edição portuguesa chega agora pelas Edições 70.
Governar o Mundo: a História de uma Ideia, de 1815 aos nossos dias, publicado originalmente em 2012, é um estudo inovador e de grande fôlego sobre as várias formas imaginadas, umas executadas outras não, de coordenação e cooperação internacional, no seu sentido mais ambicioso, nos últimos dois séculos. O historiador Mark Mazower focou-se maioritariamente no universo anglo-saxónico, e neste estudo escalpeliza os vários ordenamentos internacionais que se prolongaram até ao presente, uma reflexão que se afigura oportuna em tempos de exacerbados chauvinismos e nacionalismos. O P2 apresenta uma selecção de algumas das ideias do livro, recolhidas por José Pedro Monteiro e Miguel Bandeira Jerónimo, investigadores do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e que prefaciam a versão portuguesa, da responsabilidade das Edições 70.
Internacionalismo no plural
“É evidente que a maior parte das Grandes Potências nunca sentiu a necessidade de algo como a Liga das Nações, o Comintern ou a ONU. Por exemplo, os Nazis descartaram a própria ideia de organização internacional. O que carece realmente de explicação é o que levou os britânicos, no apogeu do seu poderio mundial, e depois os americanos, a investirem tempo e capital político na criação de instituições internacionais.
Os historiadores cujos escritos celebram o internacionalismo como o triunfo gradual de um sentimento virtuoso de comunidade global não costumam considerar que valha a pena fazer esta pergunta, e o mesmo acontece, de forma controversa, com os especialistas que consideram as instituições meras máscaras dos desígnios das Grandes Potências.
Os politólogos têm abordado a questão dos benefícios do multilateralismo mas em geral no âmbito de uma conversa entre especialistas e decisores políticos americanos sobre o caráter da política externa dos EUA e a utilidade das Nações Unidas para os interesses nacionais americanos. Fala-se muito na linguagem semicientífica que esta literatura preza, em racionalidade e partilha do fardo, na teoria dos jogos e na lógica do risco, mas sendo a sua função aconselhar Washington tem pouco a dizer acerca dos objetivos políticos subjacentes ao internacionalismo liberal nas suas diversas incarnações.
Na realidade, a Grã-Bretanha e os Estados Unidos tiveram bons motivos para aceitar os compromissos inerentes a uma política internacionalista. Os britânicos apoiaram a Liga das Nações em 1918 como forma de ratificarem uma nova configuração territorial na Europa e de salvaguardarem o seu império; por seu lado, os americanos empenharam-se na construção da organização sua sucessora para preservarem os entendimentos entre as Grandes Potências alcançados durante a Segunda Guerra Mundial e para garantirem um quadro para a diplomacia que tornasse a liderança do mundo aceitável para o público americano, sempre desconfiando de envolvimentos prolongados no estrangeiro.
Um fator que contribuiu para este desiderato foi o facto de a participação de Washington no novo organismo mundial ter riscos limitativos mínimos, dado que os Estados Unidos conseguiram combinar universalismo e excecionalismo a um nível inédito, escrevendo as regras da forma que mais servia os seus interesses nucleares e isentando-se das que os seus legisladores não gostavam. Dado que toda a gente queria os Estados Unidos a bordo praticamente em quaisquer condições, os dois pesos e duas medidas foram tolerados.
(...)
Caminhar neste terreno sobrepovoado e sempre em movimento nunca foi fácil e está prestes a tornar-se ainda mais difícil. É que o internacionalismo, que nasceu como uma expressão das filosofias políticas ocidentais e das necessidades das Grandes Potências, está claramente a tornar-se muito mais multicentrado e fissíparo.
É difícil exagerar o significado do limiar que estamos a atravessar, com o quinhão ocidental do PIB mundial a descer pela primeira vez abaixo dos 50% em pelo menos dois séculos.
Com o aumento do poder e da influência de Estados como o Brasil, a Índia, a Indonésia e a China, o sistema internacional (uma frase reconfortante que tapa mais do que revela) alterar-se-á de forma dramática. Por conseguinte, escrever-se-á muito mais da perspetiva do que era designado Terceiro Mundo para refazer a versão da história aqui narrada.
O presente livro centra-se nos atores europeus e americanos primariamente responsáveis pela origem dos aparelhos institucionais e conceptuais. Numa altura de tremenda confusão em relação ao propósito e à durabilidade das nossas instituições internacionais, poderá ser útil compreender melhor como chegámos a este ponto. O próprio vocabulário que utilizamos para compreender a nossa localização no mundo é refém de pensamentos confusos e premissas mal articuladas. O que significa “governança”? Quem fala pela “sociedade civil?” Será que as ONG existem mesmo? A história da evolução da ideia da governação do mundo poderá não dar respostas definitivas a estas perguntas mas oferece pontos de referência.
Uma “esplêndida rede de novas instituições”
(...) O Concerto da Europa não tinha burocracia, nem sede, nem secretariado. Os seus críticos radicais também não pensaram em criar instituições permanentes, dado que viram a transição para a paz universal em forças espontâneas como a aplicação da razão humana ou da vontade de Deus, nas tendências do capitalismo ou através da emergência da opinião pública. Todos foram melhores a esboçar os contornos da utopia iminente do que a especificar os organismos que a concretizariam. Por conseguinte, se a história da cooperação internacional se limitasse ao Concerto e aos seus opositores iniciais, quase não se poderia falar em organizações internacionais.
Para compreendermos como estas surgiram e se tornaram uma característica permanente da paisagem política moderna, temos de olhar para outro lugar: para a autoridade da ciência e da tecnologia em meados do século XIX, e para as visões científicas de um mundo cientificamente organizado. Surgiram em muitas esferas — na estatística, na engenharia, na geografia, na bibliografia, na saúde pública — homens que não pretendiam eliminar o Estado mas sim tomá-lo de assalto, substituir a aristocracia pela meritocracia profissional, afastar os amadores bem relacionados e incorporar novos quadros de elites cultas e racionais. Na sua ótica, a união fundamental do mundo era um facto científico. Para melhorar a condição da humanidade, impunha-se combinar a compaixão cristã com a educação, a procura da verdade e a organização sistemática da vida profissional. (...)
Em 1913, foi escrita a primeira dissertação sobre o internacionalismo: falou do aparecimento de “um fenómeno social moderno” do século e meio anterior, principalmente visível nas “conferências diplomáticas internacionais, congressos não oficiais, associações, gabinetes e outras organizações”.
Embora o número de Estados do sistema internacional tenha mais ou menos duplicado no século pós-Congresso de Viena, as organizações governamentais internacionais aumentaram de menos de uma dezena para cerca de cinquenta, com a maioria a ser fundada depois de 1875. Pelo menos dezassete tinham sede permanente e pessoal próprio. Ajudaram a gerir redes ferroviárias e fluviais, normalizaram os direitos patrimoniais e as unidades de medida, e unificaram as políticas de saúde pública.
Os organismos internacionais não oficiais eram ainda mais numerosos: de apenas vinte e cinco no início da década de 70, aumentaram tão depressa que um especialista contou mais de seiscentos no princípio do século XX, metade dos quais com poucos anos de existência.
Por conseguinte, a parte final do século XIX assistiu ao aparecimento de uma
presença institucional completamente nova na vida internacional. Até os monarcas europeus patrocinaram estas organizações para se associarem ao seu espírito progressista. O príncipe Alberto e o imperador Luís Napoleão foram os primeiros e mais importantes mas foram imitados por outros governantes.
Por exemplo, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura não teria existido sem o patrocínio do rei de Itália ao seu precursor, o Instituto Internacional de Agricultura — um organismo concebido, segundo o especialista em finanças e político italiano Luigi Luzzatti, “para acelerar a solução de problemas que só podem ser resolvidos com a associação do conhecimento científico ao poder legislativo”. Para Luzzatti, que mais tarde foi primeiro-ministro, não existiam praticamente limites ao bem que o instituto podia fazer: podia melhorar as condições de vida da maioria dos habitantes do mundo que trabalhavam na terra, evitando a propagação do socialismo, e podia proteger os milhões de indivíduos forçados a emigrar em todo o mundo. E, sobretudo, podia promover a criação de organismos internacionais. “O Século Vinte poderá deixar o seu selo numa esplêndida rede de novas instituições!”, exclamou ele com entusiasmo. (…)
O internacionalismo como orgulho branco
Foi principalmente na África do Sul que se desenvolveu a ideia da fusão orgânica das nações (brancas) do Império Britânico. Terminada a Guerra dos Bóeres, jovens intelectuais e decisores políticos britânicos apostaram em unir os bóeres e os anglófonos, um desejo partilhado por [Jan] Smuts.
Enquanto Whitehall se preocupava com a Índia, eles viram o futuro como uma aliança de povos brancos — australianos, canadianos e neozelandeses — com a pátria, que respeitaria a evolução das culturas nacionais e garantiria a segurança coletiva. A ameaça que receavam não era tanto a Alemanha, mas sim os povos agitados da Ásia e da África, cujo número os fazia questionar a sua capacidade para civilizarem o mundo. É este tipo de raciocínio que explica a razão pela qual os teóricos da Comunidade Britânica também foram geralmente a favor de laços mais estreitos com os Estados Unidos.
Por conseguinte, a Comunidade Britânica foi ao mesmo tempo um produto da ansiedade racial e do prestígio nacional, uma solução parlamentar para uma potência imperial pressionada: o internacionalismo como “Orgulho Branco”.
Na perspetiva de Smuts, a criação da Comunidade Britânica permitiria à nova África do Sul combinar um nível elevado de autonomia nacional com a segurança e as vantagens comerciais oferecidas pela plena participação na vida do principal império da época.
Mas Smuts não se ficou por aqui. Era um evolucionista na política (tal como Wilson) e durante a guerra viu na ideia da Comunidade Britânica um modelo para uma comunidade política maior, uma Liga das Nações que reuniria todos os povos civilizados, curando a Europa e ajudando a África. Este objetivo nobre — do qual ele, com a sua missão africana sempre presente, estava bastante ciente — também tinha um propósito estratégico muito concreto: na liga, juntar-se-iam os destinos do Império Britânico e dos Estados Unidos.
(...).
Embora seja sempre tentador classificar a ideologia nazi como a expressão internacional de um grupo de lunáticos, não existe, no contexto da história da governança internacional do século XX, uma crítica mais sustentada aos pressupostos dominantes do internacionalismo liberal. Não se tratou apenas de o nacional-socialismo discordar dos termos do acordo de paz de Versalhes. A palavra “revisionismo” é um termo que não faz jus à natureza abrangente das objeções dos nazis: eles acreditavam que a sua filosofia orientadora representava uma visão completamente diferente do mundo, uma visão que expunha o internacionalismo da Liga como o embuste que era.
Para o nacional-socialismo, a Liga tinha várias coisas fundamentalmente erradas. Uma era a mistificação e a idealização do direito internacional, como se existisse numa esfera abstrata independente das relações de poder que ele refletia. Na realidade, argumentaram os alemães, a Liga mais não fizera do que congelar um momento em que o liberalismo, corporizado pela Grã-Bretanha, a França e os Estados Unidos, fora temporariamente dominante, e depois limitara-se a reescrever as regras à sua imagem. Mas por detrás do falatório de uma nova organização em que todos os Estados eram iguais, na realidade, alguns eram mais iguais do que os outros. (...)
Na visão organicista nazi da política mundial como uma luta constante pela sobrevivência, isto era implausível. Tal como uma planta não podia parar de crescer, não se podia esperar que os Estados se abstivessem de aproveitar oportunidades de expansão pela conquista; não se podia esperar que fizessem o que os juristas diziam — o ideal do movimento da arbitragem e do novo Tribunal Permanente de Justiça Internacional —, dado que não existia nenhuma “medida de justiça comum”; a lei devia, tal como acontecia no Terceiro Reich, emanar da vontade do povo, expressa nas políticas dos seus governantes.
Os nazis foram buscar a uma escola de pensamento alemã mais antiga a opinião — comum aos conservadores do século XIX — de que, em vez de se procurar subordinar os Estados ao controlo internacional, se deveriam considerar sacrossantas a vontade e a autonomia do Estado; em momentos extremos, isto levou alguns juristas alemães a negar a existência do direito internacional, uma negação que ganhou força a partir de meados dos anos 30, com a ascensão de uma leitura confessadamente racista da lei. Se a política era uma luta entre raças, cada uma unificada no seu próprio Estado, então na realidade as raças não podiam nem deviam ter nada em comum.
Segundo esta leitura, cada Estado devia desenvolver a sua própria conceção da lei. Por conseguinte, os tratados só deviam ser observados se tal conviesse aos signatários: eram “bocados de papel”, como admitiu um jurista alemão na imprensa, e não podiam tornar refém o bem-estar da raça. Ou nas palavras de outro: “Os princípios jurídicos internacionais geralmente reconhecidos só são reconhecidos pela Alemanha quando coincidem com os conceitos jurídicos do Povo alemão.” (...)
Uma “comunidade mundial democrática”
Tal como o presente livro tem procurado explicar, a governação do mundo, no sentido formulado por Saint-Simon, H. G. Wells ou Paul Otlet, tem sido sempre do agrado de uma minoria. A maior parte dos internacionalistas do século XIX, que eram crentes na compatibilidade entre o nacionalismo e o internacionalismo, preferiu um organismo coordenador que desse poder aos Estados-nações membros. Porém, nos anos 40, a governação do mundo capturou momentaneamente a imaginação de um número espantosamente grande de pessoas. A razão foi simples: a bomba atómica e a questão do controlo da sua utilização.
Em 1940, no seu conto profético intitulado Solução insatisfatória, o escritor de ficção científica Robert Heinlein viu que o desenvolvimento de armamento radioativo obrigaria a debater a governação mundial: imaginando a derrota de Hitler, Heinlein retratou os líderes americanos a debaterem se deveriam impor “uma ditadura militar em todo o mundo” ou usar a oportunidade para criarem uma “comunidade mundial democrática” dotada de poderes policiais para controlar a utilização das novas e terríveis armas e impedir a sua proliferação: Ouvi alguém murmurar “Liga das Nações”. “Não!... Nada de Liga das Nações. A Liga era impotente porque não tinha uma existência real, não tinha poder. Era… apenas uma associação de debate, um embuste. Isto seria diferente porque nós pô-la-íamos a funcionar!”
Cinco anos depois, Hitler tinha sido derrotado e o medo atómico era universal. A questão crucial era obviamente quem controlaria a energia atómica. Os bombardeamentos de Hiroxima e Nagasáqui ensombraram a conferência de São Francisco, e em ambos os lados do Atlântico muitos ex-apoiantes da ONU disseram que a organização se tinha tornado uma resposta aos problemas de ontem e que era urgentemente necessário avançar para uma federação mundial para que a humanidade evitasse uma terceira e última guerra mundial.
Os físicos foram dos mais destacados proponentes desta visão. Em outubro de 1945, Albert Einstein assinou uma carta ao New York Times que profetizou que a ONU iria fracassar como instrumento de paz porque se baseava na “soberania absoluta de Estados nações rivais”; Einstein apelou à criação de uma “Constituição Federal do mundo, uma ordem jurídica mundial funcional, se queremos impedir a guerra atómica”.
No mês seguinte, os cientistas de Los Alamos emitiram uma declaração pública na qual apelaram à governação do mundo como o objetivo final. Einstein aceitou a presidência do Comité de Emergência de Cientistas Atómicos, para os quais o plano da administração Truman para criar uma poderosa Agência Internacional de Desenvolvimento Atómico — apresentado na primeira reunião da Comissão da Energia Atómica da ONU, em 1946 — abriu a possibilidade de transformar a ONU na poderosa força controladora da energia atómica que desejavam; o seu fracasso, depois de uma altercação com os soviéticos por causa da organização das inspeções, deixou-os desalentados e o movimento fragmentou-se porque a maior parte dos cientistas aceitou a necessidade de continuar as suas investigações para Washington.
Quando a Comissão do Senado para as Atividades Antiamericanas começou a investigar os cientistas com contactos internacionais, desapareceu a possibilidade de prosseguir os debates. Em finais de 1947, os federalistas científicos entraram inegavelmente em declínio (…)
A reeleição surpreendente de Truman, em 1948, assinalou o momento em que os decisores políticos americanos começaram a olhar sistematicamente para além da Europa, e Truman regressou às Nações Unidas, desta vez não para se aproximar da URSS, mas para combater a sua influência.
A ideia de que a América tinha a missão especial de transformar sociedades em todo o mundo foi um elemento integral desta nova conceção do seu papel. No grande confronto ideológico com o comunismo soviético, a administração Truman decidiu que tinha que demonstrar que o capitalismo dispunha dos instrumentos mais capazes de melhorar a vida dos pobres e desfavorecidos do mundo. Mostraria que, não obstante as afirmações de Lenine, o capitalismo não era sinónimo de colonialismo e que nas mãos da América as instituições internacionais poderiam contribuir para pôr fim ao domínio imperial europeu em vez de o perpetuar, desvendar o segredo do crescimento, banir a memória do fracasso do capitalismo nos anos 30 e mudar o mundo através da aplicação da tecnologia e do conhecimento. Era o legado do internacionalismo científico do século XIX reconfigurado para uma era de planeadores e especialistas que construiria sobre a herança institucional da Liga das Nações e o levaria mais longe do que a Liga tinha sonhado.
No discurso de tomada de posse de Truman, em janeiro de 1949, a palavra-chave foi o desenvolvimento. Procurando desabituar os países da ajuda de emergência americana, o discurso — conhecido como Programa do Ponto Quatro por causa da sua parte crucial — apresentou uma visão sóbria do desafio global que os americanos tinham pela frente e elogiou a ajuda externa como uma forma de disseminar a democracia e a paz. (…)
Este aspeto ambidextro do internacionalismo americano, fundamental para
compreender o apoio continuado dos EUA às instituições da ONU no pós-guerra, perde-se quando se divide a política externa americana em tendências idealista e realista. A maior parte do tempo foi as duas coisas e, para os pragmáticos ao leme, o verdadeiro realismo foi usar as instituições internacionais sempre que possível.
Esta estratégia ofereceu um capital simbólico enorme e cobertura política a custos absurdamente pequenos: o orçamento da ONU e das suas principais agências (ONUAA, ICAO, OIT, UNESCO, OMS) para 1945 totalizou cerca de 83 milhões de dólares, dos quais os Estados Unidos contribuíram 24 milhões, numa altura em que os donativos americanos à Grécia foram de cerca de 68 milhões de dólares, e em termos mundiais ultrapassaram a soma colossal de 5,1 mil milhões de dólares.
Por conseguinte, tendo em conta a influência poderosa dos EUA no financiamento, no fornecimento de pessoal e na configuração da ONU, a linha divisória entre as agências globais e as americanas foi difícil de traçar desde a primeira hora. Mesmo depois de a União Soviética começar a fornecer ajuda através da ONU, depois da morte de Estaline, as somas envolvidas foram minúsculas quando comparadas com o contributo americano — por exemplo, apenas 2 milhões de dólares em finais dos anos 50, contra cerca de 38 milhões disponibilizados pelos Estados Unidos. Nenhum país se aproximou da influência exercida pelos Estados Unidos sobre o desenvolvimento internacional. (...)
O poderio americano não se expressou exclusivamente através do controlo de instituições; fê-lo ainda mais através da difusão das suas ideias sobre o que era o conhecimento. O caso mais óbvio foi o da economia. A teoria da modernização tinha integrado a economia mas também fora ecleticamente beber a outras disciplinas — o seu quadro básico era a história.
Contudo, a maioria dos economistas do FMI não se interessava muito pela história nem pelas outras ciências sociais. Os seus funcionários eram quase todos masculinos e economistas, formados em universidades americanas e inglesas. Entraram para o FMI e para o Banco Mundial nos anos 80 e eram revolucionários com expetativas racionais que baseavam as suas receitas em modelos desenvolvidos em ambas as instituições e envoltos na linguagem de modelos matemáticos extremamente formalizados que a profissão começava a valorizar. Eram praticantes da disciplina talvez de maior sucesso das universidades americanas do pós-guerra, e viviam num estado de maior ou menor ignorância acerca das culturas, línguas ou instituições dos países que tinham sido incumbidos de curar, uma vez que tinham sido ensinados, como muitos economistas ainda são, a acreditar que a sua ignorância — sendo uma questão de “variáveis exógenas” — não era importante. A substância da sua abordagem coalesceu no chamado Consenso de Washington, uma frase cunhada em 1989 pelo economista John Williamson para identificar um conjunto de prescrições: evitar grandes défices fiscais; reduzir os subsídios estatais; liberalizar o comércio e os regimes de investimento; privatizar; desregular.
Os princípios económicos do desenvolvimento tinham como premissa a possibilidade de economias atrasadas necessitarem de um conjunto de prescrições diferentes das aplicadas às economias avançadas, mas o novo dogma partiu do princípio de que o mercado encerrava a virtude universal. Os seus proponentes não estavam para considerar alternativas: segundo disse um funcionário do banco central brasileiro, nos anos 90, a escolha era “ser neoliberal ou neo-idiota”.
Ironicamente, a atitude psicológica destes economistas em relação ao mundo era quase idêntica à dos teóricos da modernização dos anos 60: imbuídos da mesma crença no poder transformativo das suas ideias, trataram de desmantelar uma grande parte da obra dos especialistas da geração anterior. Segundo um economista, era necessária uma abordagem que fosse “disruptiva numa escala historicamente inédita”.
A consequência foi uma transformação extraordinária das relações patrimoniais em todo o mundo. (...)
Um sonho do passado?
Para os internacionalistas do século XIX, com os quais o presente livro começou, o futuro conjurou uma nova ordenação para a humanidade, uma ordenação que eles viram com uma confiança baseada no seu controlo sobre um universo de factos: daqui a visão de Bentham de um sistema jurídico perfeito que dependia da acumulação de todos os conhecimentos úteis, ou a via de Karl Marx para um futuro comunista através da história do passado do capitalismo. Para os construtores de instituições do século XX, de Smuts a Roosevelt e de Robert Jackson a Walt Rostow, o futuro podia ser planeado e gerido com presciência em nome de comunidades inteiras de nações, talvez mesmo do conjunto do mundo.
Hoje, com a primazia dos factos contestada pela Web — um artigo recente saudou a morte do facto —, o futuro, de forma mais importante do que nunca, foi privatizado, monetizado e transformado em fonte de lucros. Existe todo um setor empresarial dedicado à sua modelação e comercialização; os nossos mercados financeiros, em geral, assumem o futuro como determinante dos valores atuais de uma forma que não se aplicava há um século. Ninguém sente mais o fardo de um futuro essencial mas irreconhecível do que o corretor da bolsa e o operador financeiro. No entanto, este futuro individualista movido pelo dinheiro sobrepôs-se à visão mais antiga do bem público do futuro.
Na atual atomização da sociedade, os cidadãos e as classes desapareceram como
forças de mudança e deram lugar a um mundo de indivíduos que se reúnem como consumidores de produtos ou informação e que confiam mais na Internet do que nos seus representantes políticos ou nos especialistas que falam na televisão.
As instituições governativas perderam de vista o princípio da política enraizada nos valores coletivos da coisa pública mas continuam a defender a “civilização do capital”. Os rituais da vida internacional estão bastante seguros. Os chefes de Estado deslocam-se anualmente à Assembleia-Geral das Nações Unidas. Debatem reformas e fazem declarações grandiosas de metas globais que raramente são atingidas. Políticos, jornalistas, banqueiros e empresários fazem a sua peregrinação anual ao fortemente guardado recinto alpino de Davos, procurando confirmar, através deste triunfo do patrocinato empresarial, a existência de elite governativa global à qual pertencem.
Os nossos representantes continuam a transferir poder para os especialistas e para os reguladores que se regulam a si próprios em nome de uma governança global eficiente perante o olhar de um público cético e alienado. A ideia da governação do mundo está a tornar-se um sonho do passado.
Este artigo foi publicado no P2, caderno de domingo do PÚBLICO, na edição de 4 de Junho de 2017