Delação premiada, bufos e grandes princípios
Será que ninguém vê que a maior ofensa ao Estado de Direito é a confrangedora incapacidade de aplicar uma justiça célere e eficaz nos casos de corrupção?
A conversa sobre a delação premiada está de regresso, à boleia das Conferências do Estoril, que juntaram numa só sessão o juiz português Carlos Alexandre, o juiz brasileiro Sérgio Moro, o magistrado italiano Antonio Di Pietro e o juiz espanhol Baltazar Garzón. Pergunta: quantos destes magistrados são a favor da delação premiada em casos de corrupção? Resposta: todos.
Mas não são só estes magistrados. Entretanto, o PSD também se declarou “inequivocamente a favor” da delação premiada (Paula Teixeira da Cruz dixit), tal como a associação dos juízes e a associação dos magistrados do Ministério Público. Significa isto que a conversa vai evoluir para um debate sofisticado, informado e sério, acerca do alcance da medida, das suas limitações e dos seus instrumentos? Duvido muito. Há demasiada gente com vontade de desconversar.
A desconversa é de dois tipos. O primeiro tipo pode resumir-se assim: “Delação?!? Mas o que é isto?!? Voltámos aos tempos da PIDE?!? 25 de Abril sempre, fascismo nunca mais!” Como acontece com quase todos os argumentos que contêm demasiados pontos de exclamação, esta alegação é apenas estúpida. O bufo servia para denunciar à PIDE pessoas inocentes cujo único crime era discordarem de um regime político. O delator premiado (em Portugal prefere-se a expressão “colaborador premiado”, exactamente para evitar a carga política da palavra “delação”) serve para denunciar à justiça pessoas supostamente culpadas de crimes de corrupção, através de esquemas obscuros e pactos de silêncio muito difíceis de quebrar. Querer comparar um bufo com este tipo de delator é assim como confundir espiar com expiar. A justiça portuguesa tem muito a ver com a do Estado Novo, com certeza, mas não é na promoção de centenas de milhares de bufos – é na protecção injusta dos mais poderosos e na forma como a oligarquia escuda as práticas criminosas através de leis que dificultam o seu escrutínio. Aí, sim, há parecenças muito significativas.
O segundo tipo de desconversa é ainda mais pernicioso do que este, porque parece mais inteligente: a eterna invocação dos grandes princípios do Estado de Direito, dos quais ninguém discorda. Cito José Manuel Pureza, do Bloco, como poderia citar António Lobo Xavier, Pacheco Pereira ou Jorge Coelho: “Ceder às respostas fáceis e aos instintos justiceiros é um caminho muitíssimo perigoso e poderá originar situações de difamação agravada.” Se repararem, qualquer pessoa que defenda a delação premiada ou a lei do enriquecimento ilícito apanha logo com uma saraivada de acusações de populismo e justicialismo. A nova definição de populismo é esta: achar que as coisas não podem continuar como estão e tentar encontrar alternativas sérias para modificar o statu quo.
Os grandes defensores do Estado de Direito não gostam disso. Concordam que as coisas não estão bem, mas quando se chega à parte chata de decidir o que mudar ficam-se pelos princípios gerais de “mais meios” e “melhor legislação”. Enriquecimento ilícito? Não, porque inverte o ónus da prova. Delação premiada? Não, porque belisca a presunção de inocência. Será que ninguém vê que a maior ofensa ao Estado de Direito é a confrangedora incapacidade de aplicar uma justiça célere e eficaz nos casos de corrupção? Pelos vistos, não. Celebremos, pois, os magníficos princípios da justiça portuguesa. Quanto ao pequeníssimo facto de a própria justiça não estar a ser justa, é detalhe sem importância, que não nos deve aborrecer demasiado.