“Governo de José Sócrates precisava de dominar o BCP”
Jorge Jardim Gonçalves, fundador e líder histórico do BCP, revela os pormenores que levaram à sua saída do banco há dez anos.
O dia 28 de Maio de 2007 foi o começo do fim de um ciclo no Banco Comercial Português (BCP) dominado pelo grupo de Jorge Jardim Gonçalves, o fundador, e que culminou no seu afastamento antes do ano terminar. Mas naquele final de Maio decorreu aquela que será, porventura, a Assembleia-Geral (AG) mais mediática do sector bancário. E que ficou marcada por um episódio que, dez anos depois, muitos ainda recordam: à saída, o investidor Joe Berardo levantou o braço e fez o “V” de vitória.
O gesto tinha significado. Após meses de luta de bastidores, o grupo formado por Joe Berardo, Nuno Vasconcelos e Rafael Mora, da Ongoing, António Mexia, líder da EDP, Carlos Santos Ferreira, então líder da Caixa Geral de Depósitos (CGD), os empresários Manuel Fino, Diogo Vaz Guedes, Bernardo Moniz da Maia e Filipe de Botton, e João Rendeiro, fundador do Banco Privado Português (BPP), tinha, finalmente, conseguido vergar Jardim Gonçalves, à data a presidir ao Conselho Superior (CS) do BCP.
Passou entretanto uma década, e quatro presidentes executivos — Paulo Teixeira Pinto, Filipe Pinhal, Carlos Santos Ferreira e o actual líder, Nuno Amado — comandaram a instituição que ao longo do tempo foi mudando no sentido literal do termo. Hoje, o BCP é detido por um grupo chinês, a Fosun, a caminho de deter 30% do capital. Temas que serviram de pretexto para a entrevista a Jardim Gonçalves.
O BCP chegou à AG de 28 de Maio de 2007 com o capital fracturado e um CS, liderado por si, em guerra com a administração executiva também ela dividida: o presidente executivo (CEO), Paulo Teixeira Pinto, Francisco Lacerda e Castro Henriques divergiram do resto dos gestores. Uma reunião em que saiu derrotado, humilhado. Alguma vez tinha equacionado o afastamento naquelas condições?
Meses antes, enquanto presidente do CS, tinha sido surpreendido [por Paulo Teixeira Pinto] com uma proposta do Conselho de Administração (CA) de alteração estatutária, com dois níveis de governação (executiva e accionista), e a intenção de avançar com uma oferta pública de aquisição (OPA) sobre o Banco Português de Investimento (BPI). Ora, o CS nunca seria contra os dois temas e a Comissão Executiva [onde estavam os anteriores gestores da equipa de Jardim Gonçalves] sabia disso. No caso da OPA, o CS fazia depender o seu apoio de uma única condição: existir uma forte probabilidade de ser aceite pelos accionistas e pela gestão do BPI.
Acabaram por ser dois temas que tornaram evidente a fractura...
Estava previsto que o futuro Conselho Geral e de Supervisão (CGS) [que na nova proposta ia substituir o CS] reportasse à AG, e que os executivos fossem escolha do CGS. Não era esse o entendimento de Paulo Teixeira Pinto, que pretendia que o CA fosse eleito, à semelhança do CGS, em AG, o que considerei inconsistente. E questionei Paulo Teixeira Pinto, que se justificou como uma exigência da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM). Só mais tarde me foi explicado que a CMVM foi condicionada por técnicos do BCP, pela Ongoing e pela EDP. Este ponto é importante, pois o objectivo do modelo visava esvaziar o poder dos accionistas sentados no CS que iriam transitar para o CGS. E porquê? Porque a nomeação do CA em AG era a forma de o núcleo de accionistas que se estava a formar ganhar poder e poder escolher a gestão executiva. Aí, sim, vi um sinal de que Paulo Teixeira Pinto se queria afastar dos accionistas que o tinham escolhido e estavam no CS, para se entender com o grupo que se estava a constituir.
Está a referir-se a Joe Berardo, Rafael Mora, Nuno Vasconcelos, António Mexia, Carlos Santos Ferreira, Armando Vara, Vaz Guedes, Moniz da Maia, Filipe de Botton, José e Manuel Fino e João Rendeiro?
Esses, esses... Mas como o modelo de eleger o CA em AG não estava consagrado na lei, pedi que ficasse consagrada essa possibilidade estatutariamente. E foi depois disso que Paulo Teixeira Pinto tomou um conjunto de acções sem ter o apoio do CS.
Tais como?
Só mais recentemente percebi o que aconteceu naquele período, onde houve uma conjugação de ingredientes todos metidos no BCP para provocar uma guerra. E um deles, e muito importante, é o político. Não falo de um partido político, mas de um grupo de pessoas cobertas politicamente pelo PS e pelo PSD. Mas nem o CDS nem o PCP quiseram saber a verdade. Quero deixar claro que quando entrei na reunião estava perfeitamente inocente, pois, para mim, não havia uma guerra.
É difícil aceitar a tese de que chegou “inocente” à AG de 28 de Maio de 2007. Já circulavam rumores e notícias sobre as divergências.
Confesso que fiquei surpreendido ao ver tantos advogados na sala, e não accionistas. Mais fiquei quando os advogados começam a movimentar-se de um lado para o outro e a colocar entraves às propostas do CS [de deixar cair a nomeação da gestão em AG e de reforçar a blindagem do capital], com o objectivo de fazer tempo e de inviabilizar a reunião. E, como a AG não tinha fim, acabei a propor a retirada da proposta, o que era contestado, pois, para mim, o importante era votar as contas anuais, na medida em que era o último dia para o poder fazer. Foi aí que apareceu Luís Champalimaud a dizer: “Se o Jorge quiser proponho a suspensão da AG.” Achei estranho, pois ele nunca tinha aberto a boca para nada. É só a seguir a esta reunião que ele [Champalimaud] se evidencia a tomar posições, alinhado com o António Mexia e os outros.
O que pensou quando, depois de deixar cair a sua proposta, viu o Joe Berardo fazer o “V” de vitória?
Que fazia parte de um show. Tudo era um teatro. Depois da AG decidiu-se que eu iria falar com os accionistas com muitas acções, mas sem representação nos órgãos sociais, para que, em próximas eleições, as suas posições fossem tidas em conta.
A guerra interna trouxe para a esfera pública o tema das offshore criadas em 2002 para o BCP gerar artificialmente capital e sustentar a sua expansão. Voltaria a recorrer a este esquema?
Recuso essa ideia. As offshore nunca foram a aumentos de capital do banco, nunca geraram capital. O tema das offshore foi lançado para me descredibilizar e à gestão. Em todos os bancos há UBO [offshores de que se desconhecia o beneficiário final] que se perdem, e pode ser por ilicitudes ou por erro técnico. E foi alguém que, sabendo que a situação existia no BCP, a aproveitou e a usou para alimentar a guerra.
Alguém de topo?
Não necessariamente. Pode ter sido um executivo, alguém que servia o executivo, alguém de nível médio com a expectativa de receber qualquer coisa. A minha percepção é que foi pessoa do banco, qualificada e que sabia o que estava a fazer. No banco não havia nada, nem offshore nem coisas erradas.
Como é que insiste nessa tese?
No BCP havia milhares de offshore, como há em todos os bancos. Mas não foram feitas para fazer aldrabices, não foram. Ninguém nos acusou disso.
Hoje fica claro que havia irregularidades: o Ministério Público, o Banco de Portugal (BdP) e a CMVM abriram investigações que deram origem a acusações e condenações.
Eu, Jorge, não fui acusado de ter mandado fazer seja o que for, nem houve clientes, colaboradores ou accionistas lesados.
Como é que pode vir dizer que, enquanto principal executivo, não teve responsabilidades nessas operações?
O que digo é que o BdP não mandou corrigir nenhuma conta, não houve uma perda, nem avançou com processos. Esses veículos, as offshore de que fala, nunca foram a aumentos de capital. E na altura da crise não tinham acções, só bens imobiliários. Volto a dizer que o tema das offshore foi lançado na esfera pública para gerar desconfiança sobre o BCP, para o fragilizar e o descredibilizar.
Quando é que se apercebeu de que o ataque ao BCP era para o dominar?
Só muito mais tarde é que foi possível perceber o que esteve por detrás das movimentações, dos rumores, das notícias na época e que culminaram na saída da CGD de três senhores [Carlos Santos Ferreira, Armando Vara e Vítor Fernandes] e à sua entrada no BCP. Pode ter a certeza de uma coisa: ninguém tira ou põe um presidente de um grande banco, como é o BCP ou a CGD, sem ter o apoio do Presidente da República, do primeiro-ministro, do ministro das Finanças. Foram muitos milhões de euros de crédito dados, a partir de 2006, pelo BCP, pela CGD e pelo Banco Espírito Santo (BES) aos grupos que se movimentaram com António Mexia para comprarem acções do BCP. Só o Banif recusou fazê-lo. E o BPI comprou acções para tomar a posição enorme no BCP e durante muito tempo não se percebeu de que lado estava, só no Verão de 2007 [depois da OPA fracassar] é que se distanciou daquele núcleo. Mas foi tudo desagradável, teve desgaste e custos.
Como é que o CS aceitou que o CA lançasse a OPA sobre o BPI sem a concertar antes?
Antes de o BCP avançar foi-me garantido que a oferta seria aceite, o que aliás consta das actas do CS, onde Paulo Teixeira Pinto foi dizer que os consultores, como a UBS, lhe tinham garantido que, embora os executivos do BPI não se sentissem confortáveis, os accionistas iam aceitar vender.
Mas apesar de o BCP ter oferecido mais de sete euros por cada acção do BPI [hoje negoceiam-se pouco acima de um euro], a OPA foi chumbada...
Só mais tarde é que tomei conhecimento da verdadeira história. E não era a que me tinha sido contada. No casamento da sobrinha do professor Cavaco Silva com o filho da Dra. Rita Lourenço, administradora da Ocidental, fiquei na mesa do Dr. Paulo Cartuxo Pereira, que estava no Morgan Stanley, o outro banco de investimento que apoiou o BCP [na OPA]. E perante toda a mesa, ele contou que tinha avisado o Dr. Paulo Teixeira Pinto de que os accionistas do BPI nunca aceitariam vender. E conclui, então, que eu, Jorge, não sabia a verdade toda.
Data daí a sua zanga com Paulo Teixeira Pinto?
Nunca houve nenhuma conversa menos agradável. Eu dizia que não e ele achava bem. E ele dizia que sim e eu achava bem. Uma relação perfeita. Ainda hoje é. Mas a certa altura ele estava dentro de um esquema e não sei se quis sair dele. E na altura fui informado de que ele mandara levantar 23 dossiês em países de Leste para estudar privatizações. E fê-lo sem consultar o CS. Fiquei preocupado.
Depois de a OPA fracassar, em Maio de 2007, o BPI veio em Outubro do mesmo ano propor uma fusão amigável com o BCP. Que também não avançou.
Depois de Paulo Teixeira Pinto deixar a gestão do BCP e Filipe Pinhal o substituir, Carlos Câmara Pestana e Artur Santos Silva vieram propor a fusão amigável do BPI com o BCP. Mas a proposta deixou Filipe Pinhal desconfortável. E eu, para facilitar, digo-lhes: eu saio do CS para Artur [Santos Silva] entrar. Mas Câmara Pestana [do Banco Itaú, accionista do BPI] e Artur dizem-me: “o Jorge não saia.” Mas eu insisto e é tudo acordado e o CA do BCP aprova.
E no último minuto, o BCP deixou cair a fusão?
É que, entretanto, Filipe Pinhal ficou a saber de uma reunião entre Carlos Santos Ferreira [a presidir na altura à CGD, accionista do BCP] e António Mexia [líder da EDP] para se concertarem na AG e votarem contra a fusão. E não querendo sujeitar-se, achou melhor recuar. E é quando sai o comunicado do BCP a rejeitar a fusão.
Há quem considere incompreensível o papel do então governador do BdP, Vítor Constâncio, hoje no BCE, durante todo esse tempo. Compreende-o?
Agora compreendo. Há um episódio esclarecedor. Na altura, ele chamou o Pinhal para lhe recomendar que não avançasse com a sua candidatura à liderança do BCP. Em simultâneo, sem nada lhe dizer, enquanto o Pinhal estava reunido com ele, Constâncio mandou chamar o [Christopher] Beck [que estava nas listas de Pinhal], mas colocou-o noutra sala. E informa o Beck que o BdP tem questões contra os dois e que quer clarificar, pois podem resultar em contra-ordenações. É então que a comunicação social começa a referir, para potenciais administradores do BCP, os nomes de Santos Ferreira, Armando Vara e Vítor Fernandes [agora no Novo Banco], que eram gestores da Caixa. A pressão para meter no BCP gente da confiança do Governo era grande e vinha de todo o lado.
Pode concretizar?
Tanto quanto sei, Paulo Macedo, na altura quadro de topo do BCP, e que estava nas listas de Filipe Pinhal, e que Paulo Teixeira Pinto queria na sua equipa, foi ter com Filipe Pinhal e disse-lhe: “Para você ser presidente tire o meu nome e coloque o de Santos Ferreira ou o de Armando Vara, e o melhor é colocar os dois.” [posteriormente, Paulo Macedo viria a integrar a equipa de gestão liderada por Carlos Santos Ferreira].
Partilha da opinião dos que entendem que Constâncio, consciente ou inconscientemente, esteve alinhado com o grupo que queria tomar conta do BCP?
O que sei é que o primeiro-ministro [José Sócrates] e o ministro das Finanças [Fernando Teixeira dos Santos] precisavam de ter um controlo mais fino do sistema financeiro para fazerem a colocação da dívida pública. Mandavam na CGD e o BES era dócil e tomava a dívida pública e o BCP era independente. E o BPI era pequeno. E o Governo precisava de dominar o BCP, o que só era possível com a nomeação de um presidente. E, pelo que hoje se sabe, o professor Campos e Cunha [antecessor de Teixeira dos Santos no Ministério das Finanças] tinha-se recusado a nomear o Armando Vara para a CGD, decisão que Teixeira dos Santos viria depois a tomar. E Armando Vara acaba por ser escolhido pelo grupo de António Mexia e da Ongoing para ir com Carlos Santos Ferreira para o BCP.
Carlos Santos Ferreira era um presidente maleável?
Não cheguei a conhecê-lo bem. Ele não explica, não fala, não comenta. Mas não é um gestor ausente. E tinha uma boa relação com José Sócrates, com Teixeira dos Santos e Vítor Constâncio. Mas não sei quem mandava em quem.
E que relação teve com Armando Vara?
Sempre muito correcta, impecável.
Dez anos depois, o que pensa de Paulo Teixeira Pinto?
Que quando percebeu que as coisas não eram como deviam ser disse que estava doente, e estava, e foi à sua vida. E isto passou-se em Agosto de 2007. Mas, em 2004, quando o escolhi para me substituir, fi-lo com toda a independência, num momento em que o futuro do BCP não necessitava de mim.
Não se sente traído por ele?
Quem sou eu para o julgar [risos]? É Paulo Teixeira Pinto! Ele não tinha nenhum dever de gratidão para comigo. Teria preferido que tudo tivesse corrido de outra maneira.