Na trincheira das memórias das Malvinas
Juntando ex-combatentes argentinos e britânicos da Guerra das Malvinas, Lola Arias mostra em Lisboa e Porto Campo Minado, obra fortíssima para lembrar que as consequências da guerra nunca se apagam de cada um daqueles corpos.
A 30 de Março de 1982, a Plaza de Mayo, em Buenos Aires, concentrou uma gigantesca manifestação contra a ditadura militar encabeçada pelo general Leopoldo Galtieri. A 2 de Abril, passados apenas três dias, a praça da capital argentina voltava a encher-se para ovacionar Galtieri num discurso em que este dava conta da ofensiva que levara à tomada de assalto pelas tropas nacionais das Ilhas Malvinas (ocupadas pelos britânicos desde a primeira metade do século XIX). Lola Arias tinha cinco anos na altura, estava ainda muito longe de juntar as duas datas numa leitura política e social. Só muito mais tarde a dramaturga e encenadora percebeu que a súbita guerra entre Argentina e Inglaterra por um território há muito reclamado pelos dois lados tinha sido especialmente conveniente a uma ditadura que se encontrava moribunda e a confrontar-se com uma crescente contestação nas ruas. Foi como um modesto e elementar truque de magia: Galtieri apontou para outro lado e logrou desviar a atenção da sua deposição iminente.
Terá funcionado durante os 74 dias da Guerra das Malvinas, mas não muito mais do que isso. Galtieri saiu de cena e no final de 1983, pouco mais de um ano passado sobre o fim da guerra, o regime caía de podre. Por muito que possa ter servido a propósitos estratégicos de Galtieri e Margaret Thatcher, é naturalmente um erro pensar que a curta duração do conflito provocou poucos danos permanentes. Em 2016, os documentos argentinos acrescentaram à sua conta mais um caso de suicídio provocado por stress pós-traumático e depressão profunda em virtude da participação forçada no conflito armado nas Malvinas, aquele escasso punhado de terras aspergido sobre as águas do Atlântico junto à Patagónia. Passados 35 anos, o número de suicídios de ex-combatentes na Argentina (mais de 500) aproxima-se do número de mortos em combate (649). Em Inglaterra, desde 2002 que a balança já pesa mais do lado do prato das vítimas prolongadas no tempo, que não souberam dar sentido à sua condição de sobreviventes do conflito.
Lola Arias, nascida em 1976, tinha então cinco anos à data do conflito. Era ainda uma menina e recorda-se da sua chegada à escola primária coincidir com a entrada do país na democracia. Lembra-se também de que todas as crianças cantavam a Marcha das Malvinas, canção que sabe ainda de cor. Os primeiros versos, recupera-os do outro lado do telefone numa chamada com o Ípsilon, dizem que “Atrás do seu manto de neblinas / não as esqueceremos / as Malvinas, Argentinas! / clama o vento e ruge o mar”. “Cresci num país em que a guerra era como uma ferida”, conta. “O facto de todos cantarmos isso gerava a ideia de que tínhamos perdido algo que era muito valioso e que ainda estávamos em luta. Todas as crianças que vão à escola até hoje sabem quais os argumentos por que a Argentina reclama as ilhas [pertencerão à província da Terra do Fogo e estarão nas mãos de invasores]. A ideia de perda e de luta era algo muito presente.”
Essa presença ganharia também uma imagem de veteranos de guerra que no final dos anos 80 e princípio dos 90 se arrastavam como mendigos nos transportes públicos nacionais, tentando ganhar umas míseras moedas a troco de emblemas ou autocolantes que tentavam impingir àqueles cuja vida não tinha sido abruptamente interrompida e estilhaçada naqueles meses em que foram submetidos a um intenso mas precário treino militar e logo atirados para a frente de batalha. “Em 70%”, diz Lola Arias, “eram miúdos de 17 anos sem qualquer vocação militar e que queriam ainda menos ser mandados para a guerra”. Tendo regressado vivos para a Argentina, fixaram uma “imagem muito degradada dos veteranos”, cuspidos de volta para as ruas depois de triturados por uma radical experiência emocional, acabados de chegar a uma idade adulta e perdidos na linha temporal das suas vidas, sem grandes apoios num país acometido por uma severa crise económica e ainda a recuperar das suas mazelas dos anos de ditadura.
Todos estes factos e estas imagens habitavam Lola Arias quando, em 2013, foi convidada a preparar para o ano seguinte, por ocasião do centenário da I Guerra Mundial e integrada no mostra mundial After the War, uma criação que reflectisse sobre os vestígios e as marcas da guerra. A criadora avançou com uma vídeo-instalação intitulada Veteranos e que reunia uma série de relatos de ex-combatentes argentinos na Guerra das Malvinas, pedindo-lhes que revisitassem episódios-chave da experiência no seu espaço quotidiano actual: um psiquiatra voltava no Hospital Alvear ao momento em que uma bomba explodira na sua proximidade, um desportista encenava a morte de um companheiro numa pista de natação, um cantor de ópera regressava ao afundamento do Belgrano dentro de um teatro. Ao apresentar Veteranos em Londres, Lola perguntou-se como seria escutar o outro lado. Começou então a entrevistar veteranos ingleses com a ideia de, em palco, juntar os antigos inimigos. Campo Minado, na Culturgest, Lisboa, a 3 e 4 de Junho, e no TECA, Porto, a 8 e 9 de Junho, no âmbito do FITEI, é a intensa e soberba concretização dessa ideia.
Inimigos em palco
Os ensaios para Campo Minado duraram mais tempo do que a Guerra das Malvinas, diz em palco um dos ex-combatentes. “Quando voltei, a guerra tornou-se uma obsessão; a minha mulher chama-me 'monotema'”, atira outro.” Depois de voltar, nunca mais conseguiu ouvir música ou ver filmes em inglês, acrescenta ainda um outro. Após contactar as associações de veteranos e entrevistar 60 pessoas dos dois lados do conflito, Lola Arias foi peneirando a sua escolha até ficar com seis homens (três argentinos, dois ingleses, um nepalês, do contingente dos gurcas, temíveis soldados que lutaram ao lado dos britânicos), cujas histórias partilhadas em palco tentam “reconstruir, 35 anos depois, episódios de guerra e ver o que a guerra fez a estas pessoas que foram para lá aos 18, 20 anos e agora têm 50 e muitos”. “Partiram para a guerra no momento em que saíam para o mundo e se convertiam em adultos”, acrescenta Lola. “Quis ver o que passou com estes homens e como foram marcados por este acontecimento tão extremo, agora que na maturidade já conseguem avaliar os efeitos que essa experiência teve na sua vida.”
Claro que ao trazer para palco corpos que podiam ter-se alvejado no campo de batalha, movidos por um ódio sem nexo que quase se limitava à circunstância aleatória de serem colocados uns contra os outros a mando de governantes que os jogavam como um baralho de cartas, a criadora argentina não estava apenas interessada na exploração das memórias e da forma como se reelaboram e reescrevem com os anos – tendo para tal falado com “psiquiatras e psicólogos que estudam a memória e o trauma para perceber como podem essas experiências reaparecer muitos anos depois” e com efeitos devastadores. “Por outro lado, interessava-me a experiência social que implicava a convivência entre eles para a criação de um projecto artístico – e esse era para mim um ponto central da obra. O que acontece se juntarmos antigos inimigos? O que vai acontecer com cada deles por causa desse encontro, ao escutar a história do outro, como construir um mesmo relato com pessoas que continuam a ter posições antagónicas?”
A discórdia, lembra Lola Arias, está longe de ter terminado e continua a determinar o diálogo entre os dois países. Talvez por isso Lola fale da importância de colocar estes homens diante de uma perspectiva diferente, ouvir o outro lado, juntá-los num processo de construção conjunto – “é curioso que aqueles que mais resistiram a entrar são os que mais desfrutam da obra, os que estão mais orgulhosos do que fizeram aqui”. De início, a juntar às barreiras previamente erguidas, a língua dificultou ainda mais a comunicação, gerou toda uma série de mal-entendidos linguísticos e culturais, quase uma imagem perfeita para a falta de entendimento entre os dois países, sem saberem escutar-se.
A qualidade da escuta, de resto, é uma das marcas do teatro-documental de Lola Arias. O palco é sempre o espaço para fazer emergir histórias, criando um momento de disponibilidade para ouvir. “O teatro”, acredita, “é um lugar de experiência, de encontro, de imprevisibilidade. Gosto dessa potência política do teatro que tem que ver com a presença do público e dos protagonistas, em que se escuta e partilha.” A construção das suas peças a partir de vários relatos, urdindo uma polifonia de onde resulta uma narrativa coerente ou contraditória, que se reforça ou se anula, que une ou divide, tem sugerido comparações da prática de Lola à escrita da Nobel da Literatura bielorussa Svetlana Alexievich. “Lê-la foi como encontrar-me com alguém que pensava nos relatos da mesma forma que eu penso”, diz a argentina. “Foi interessante encontrar alguém que constrói através de muitas vozes e pela forma como deixa falar, faz falar e trabalha a língua, as expressões e a emoção do outro, e que é reconhecida como fazendo literatura. Quando comecei a fazer teatro documental senti que era tratada como se as histórias reais tivessem um menor valor literário. Com a literatura de Alexievich é claro, é uma grande escritora e é muito difícil fazer aquilo.”
Em Campo Minado, embora estejamos sempre diante de participantes na Guerra da Malvinas (ou das Falklands, dependendo de quem usa a palavra), estamos sobretudo perante ex-combatentes. Combatentes de “uma guerra menor”, como lhe chama Lola Arias, de um conflito que não se alongou no tempo e não produziu vítimas que se contassem aos (muitos) milhares – para assim nos fazer pensar nos efeitos que todas as guerras que nos rodeiam continuarão a produzir ao longo de gerações. Não são as Malvinas que verdadeiramente estão em cena, nem tão-pouco os pormenores concretos dos dois lados. Aquilo que move Arias é trabalhar nos limites da humanidade – “até que ponto se é um ser humano, até que ponto se pode matar e morrer por uma ideia, até que ponto se é solidário com os outros, até que ponto se corre riscos por terceiros”. Por todo o lado, soçobra a culpa – a culpa de ter disparado, de derramar mais lágrimas por uma vítima do campo inimigo, de não ter conseguido salvar. Ou, talvez mais comum, de simplesmente ter sobrevivido.