Homenagem ao desequilíbrio, ao medo e à superação
Celui Qui Tombe, de Yoann Bourgeois, é uma reformulação das disciplinas do circo tradicional, a partir do ideal de transcendência da dança clássica.
O novo circo tem vindo a apropriar-se do capital de transcendência e superação que foi o da dança clássica, e ao qual a contemporânea, mais interessada noutras questões, se tende a esquivar. Investe na colaboração artística e na poética dramatúrgica, descarta o adestramento de animais, retém o maravilhamento pelo performático aliado ao saber-fazer artesanal, e a dimensão do espectáculo popular transgeracional. A peça do actor circense e bailarino Yoann Bourgeois (França, 1987; dirige desde o ano passado o centro coreográfico de Grenoble) é um pouco súmula desta sintomatologia.
Uma enorme plataforma de madeira suspensa desce, oscilante, desde a teia do palco para a penumbra da cena. Há seis corpos caídos, e o piso inclinado e instável parece fazê-los despertar de um torpor. Procuram resistir como podem, num afinco aflito, ao peso e à gravidade que os fazem deslizar da rampa, como dejectos despejados num contentor. A 7.ª Sinfonia de Beethoven empresta uma solenidade trágica ao modo como os corpos escorregam, tentam reerguer-se, vacilam e resvalam, ou se entreajudam para ensaiar nova subida esforçada. Este poderoso início, um dos pontos altos da peça, é a imagem de uma humanidade esperançada mas indefesa: seres sós e desamparados, por vezes cúmplices e solidários, obstinados em sobreviver.
Em aparente queda livre, a plataforma ameaça abater-se sobre o grupo; ou gira como um carrossel vertiginoso, e os intérpretes arriscam uma passada estugada em sentido inverso, como se contrariando a força centrífuga impedissem o inexorável ciclo da rotação do planeta. Até restar uma mulher, a correr em círculo, saltando perigosamente sobre os corpos entretanto derrubados no chão. Num colossal movimento pendular, a plataforma quase abalroa os corpos que se esquivam no último segundo, como crianças imprudentes num jogo atrevido com um baloiço gigante, ou a desafiar o vaivém de alterosas ondas oceânicas.
Associar um registo metafórico ao alto risco físico e ao impacto visual, devedores de um frisson circense depurado, faz de Celui qui Tombe uma fábula existencial. As sucessivas cenas servem com maior ou menor fluência o temário, mas a sua legibilidade permite patamares de fruição para públicos e faixas etárias distintos.
As silhuetas dos três homens e mulheres, de calças, camisas e saias casuais discretamente coloridas, são as de pessoas em trânsito numa cidade qualquer, ou tão só uma abstracção de seres humanos. O ranger estrepitoso das quedas da plataforma, como se na iminência de se desconjuntar, produz acréscimos de empolgamento; o reconhecimento de vozes célebres (Maria Callas, em Casta Diva, de Bellini; ou Frank Sinatra, My way, a dança a aproximar-se aqui do ilustrativo) facilita a adesão emotiva. Ocasionalmente, Bourgeois cede à pura acrobacia, os nexos dramatúrgicos esmorecem e ponderamos a relação entre o aparato performativo e os fins que serve. O encandear das cenas tende a repetir-se (alternam obscuridade/luz geral a expor maquinaria de palco, silêncio/estampidos naturais amplificados e música...). Há certa quebra energética quando, segundos antes do final, os intérpretes pendurados pelos braços à plataforma se deixam cair, à vez, exaustos e vencidos.
Com a herança da dança e do teatro físico a trazer contenção poética e depuração à acrobacia e ao léxico sincrético da peça, Bourgeois realiza uma estimulante reformulação das disciplinas do circo tradicional.