Dêem o Nobel a Jane Goodall
Há vários prémios Nobel — o da Medicina ou Fisiologia, o da Química, o da Física, da Economia, da Literatura e o da Paz. Jane Goodall estudou os chimpanzés, os seus comportamentos, a sua organização social complexa como ninguém antes dela tinha feito, e o que encontrou neles foi incrível e destronou-nos a nós próprios do lugar tão especial (e até arrogante) onde até à década de 60 do século passado julgávamos estar como espécie. Não, não somos assim tão mais especiais. E, sim, os chimpanzés são muito mais especiais do que pensávamos, são um espelho dos humanos em muitas coisas, boas e más.
O que Jane Goodall descobriu é que essa capacidade que dizíamos ser única da espécie humana — o uso de ferramentas — os chimpanzés, afinal, também a tinham. O uso e a construção de ferramentas pelos chimpanzés é uma das grandes descobertas. Outra que Jane Goodall presenciou, e muito surpreendeu e chocou, foi quando os viu a matarem-se de uma forma planeada. E isto também faz lembrar alguém, não é?
À descoberta de que usam ferramentas seguiu-se a de que transmitem esses conhecimentos às gerações seguintes — o que quer dizer que têm o que se chama “cultura”. E cada comunidade de chimpanzés tem a sua cultura própria: por exemplo, há chimpanzés na Guiné-Conacri que partem nozes com pedras e outros na Tanzânia não conhecem tal coisa.
Muitos estudos têm sido publicados, desde os trabalhos pioneiros de Jane Goodall, que confirmam o quão extraordinários os chimpanzés são. Sabemos, por exemplo, que se ajudam. Eles devolvem-nos em ricochete muitas perguntas sobre nós próprios e a nossa história evolutiva, porque, afinal, partilhámos um antepassado comum há apenas seis a oito milhões de anos. E se nada disto for suficiente para os protegermos, porque estão realmente em perigo, tal como outros grandes símios — os gorilas e orangotangos —, vê-los com olhos de ver talvez nos ajude a perceber como são os seres vivos mais parecidos connosco. Se cruzarmos os olhares, percebemos que eles percebem que têm à sua frente o “outro”, que somos nós.
Só pelas suas descobertas, Jane Goodall merecia o Nobel. Mas nenhum dos Nobel premeia este tipo de trabalhos. Tal como, entre outras áreas do conhecimento, não premeia a matemática, vazio que é preenchido pela Medalha Fields.
Acontece que Jane Goodall não se dedicou “só” à ciência, e a segunda parte da sua carreira é tão extraordinária como a primeira. Percorre o mundo desde meados dos anos 80 empenhada em sensibilizar o quanto é importante a preservação do planeta que temos, a natureza, os seres humanos, os animais. Para isso, lançou um programa de educação ambiental que muito acarinha, o Roots & Shoots (Raízes e Rebentos), e que é um desafio para que nos juntemos e procuremos soluções para ajudarmos, através de projectos, as pessoas, os animais e o ambiente. Quase cem países, em muitos deles através de escolas, participam neste programa, e Portugal juntou-se em 2006. E dá inúmeras palestras por ano, por todo o lado, a difundir a sua mensagem para um mundo melhor em que acredita. É mensageira da paz das Nações Unidas desde 2002, chamando a atenção para as questões ambientais e de conservação da natureza.
Há mais. Além da cientista, além da activista, Jane Goodall é ela própria um exemplo de vida para todos. Uma mulher para quem, ao que tudo parecia, o futuro não passaria pela universidade. Depois do ensino secundário, procurou trabalho como secretária. Mas a vida levou-a a África, que já tanto queria conhecer, e a cruzar-se com um dos grandes nomes da paleoantropologia (Louis Leakey) e, assim, ao estudo dos chimpanzés na natureza por longos períodos. Até essa altura, ninguém o tinha feito a sério; o único trabalho digno de nota a este respeito limitou-se a dois meses e meio de observações na natureza.
Estava-se em 1960 e uma mulher praticamente sozinha na floresta em África (a mãe teve de a acompanhar) não é bem o mesmo que hoje, ainda que hoje também não seja fácil. Ao fim de cinco anos a viver entre os chimpanzés na Tanzânia, o que descobriu permitiu que se doutorasse em Etologia. Foi uma das pouquíssimas pessoas da história da Universidade de Cambridge a fazer um doutoramento sem ter feito antes uma licenciatura. Dedicou-se aos chimpanzés da Tanzânia durante cerca de três décadas, depois a um planeta melhor. É uma mensagem política.
A ciência, como bem evidencia o que aprendemos sobre e com os chimpanzés, dá-nos lições de humildade. Jane Goodall também. Para ela, o Nobel da Paz.