A “nova máquina da verdade” e o direito à privacidade mental

Às reservas de ordem jurídica acrescentam-se questões de natureza metodológica e científica: pode a mentira ser reduzida à mera assinatura neuronal?

No dia 3 de Abril de 2012, desaparecia Pilar Cebrián, na localidade de Ricla, em Saragoça. O seu marido é apontado como suspeito de homicídio e de ocultação do cadáver. No decurso do processo, as autoridades policiais propõem a submissão do arguido ao exame neurológico P300 como meio de “acesso” à impressão cerebral eventualmente deixada pelos actos realizados. Em causa está a captação de sinais eléctricos cerebrais em resposta a um determinado estímulo (por exemplo, uma imagem). Num primeiro momento, o tribunal admitiu a realização deste procedimento. Posteriormente, um tribunal superior viria a declarar a sua nulidade. 

A aplicação de novos métodos neurológicos, com particular relevância para Imagiologia funcional cerebral por ressonância magnética e o Potencial evocado P300, figura hoje como uma realidade processual em alguns ordenamentos jurídicos. Várias são, porém, as reservas que lhe são apontadas, quer de natureza científica, quer de ordem jurídica.

É certo que a busca da verdade constitui, no processo penal, um fim que sempre se mostrou difícil de alcançar. Ao longo da história, a procura da verdade foi sendo materializada num conjunto de procedimentos que por via indirecta procuraram dar-lhe forma, separando-a da mentira. O aperfeiçoamento dos métodos de “detecção da mentira” tornou-se uma busca constante: basta ter em mente, no passado, os ordalia e juízos divinos, ou o juramento daquele que prestava o seu testemunho, até à criação, num tempo mais próximo, de técnicas mais sofisticadas como o soro da verdade, o polígrafo, a leitura de expressões e emoções ou os métodos de hipnose. Nas palavras da neurocientista Martha Farah, “até aos dias de hoje nenhum método de detecção da mentira foi capaz de se apresentar como um método exato ou preciso, daí que aquela busca persista”, renovando-se a procura pelo garante da verdade.

Os novos métodos neurocientíficos direccionados à leitura da mente, aliando ciência e tecnologia, constituíram uma nova resposta que não tardaria a alcançar a investigação criminal.

A procura da verdade está, porém, limitada pela observância dos direitos fundamentais da Pessoa, exigida pelo processo penal de um Estado de Direito. No difícil equilíbrio das finalidades processuais, a admissibilidade dos métodos neurológicos como técnicas de lie detection acarreta o risco de um regresso a um processo penal apostado na descoberta da verdade em desfavor de um processo penal protector dos direitos fundamentais da pessoa. Em particular, o uso destas técnicas sem o consentimento do arguido afecta de forma insuprível princípios fundamentais e estruturantes do processo penal, de que constitui exemplo máximo o princípio da proibição da autoincriminação.

Às reservas de ordem jurídica acrescentam-se questões de natureza metodológica e científica: pode a mentira ser reduzida à mera assinatura neuronal? E ainda que assim seja, devem tais métodos ser admissíveis? O que restará então de um direito fundamental à privacidade mental?

Estas e outras questões serão abordadas numa sessão sobre o tema integrada no primeiro dia da Brain Week – Semana do Cérebro e da Neurorradiologia, na Universidade de Aveiro. Este evento terá lugar entre os dias 31 de Maio e 6 de Junho.

Sugerir correcção
Comentar