Toxicodependentes: "Tratam-nos cem graus abaixo de cão"
Carolina, Marguerite, Inácio e Isabel são rostos dos que consomem drogas a céu aberto no Porto, numa realidade que se agravou também em Lisboa. O presidente do SICAD, João Goulão, assume que as salas de salas de chuto são precisas. As autarquias, porém, atiram a bola para as organizações no terreno.
“Deixar passar mais um dia pode significar mais 20 hepatites C. Não consigo perceber como é que um decisor político pode deixar passar mais um dia sem avançar com a criação das salas de consumo. Vamos todos pagar muito mais”, enerva-se Rui Coimbra, membro da associação CASO (Consumidores Associados Sobrevivem Organizados). Está sentado numa esplanada, no centro do Porto, ao fim de mais de duas horas a conduzir o PÚBLICO por um dos locais da cidade onde o consumo de cocaína e heroína fumadas e injectadas a céu aberto regressou em força. Do bairro do Cerco ao Aleixo, passando pela Pasteleira, Viso e Ramalde, cruzam-se consumidores com crianças que passam e adultos que atiram pedras, havendo outros que estugam o passo, assustados. Enquanto isso, as salas de consumo assistido, previstas na lei desde 2001, marcam passo nos gabinetes das autarquias do Porto e de Lisboa — onde o consumo de rua de heroína e cocaína voltou a disseminar-se nos últimos anos em zonas como Alcântara, Lumiar, Mouraria e Intendente.
Pudesse Rui Coimbra levantar-se da cadeira onde está e conduzir os decisores políticos pelo interior do Aleixo, um dos bairros camarários onde a droga se trafica e consome à vista de quem por lá se atreve a passar, para lhes apresentar Marguerite Hoffman, a fumar base de cocaína, naquela espécie de cachimbo de alumínio improvisado chamado “caneco”. Cabelo ruivo, dentes podres, está sentada num chão de preservativos velhos, embalagens de seringas e de medicamentos vazios e do lixo da construção civil que ali jaz desde as demolições, feitas em 2011, a pretexto de acabar com o tráfico e consumo de droga e onde ainda hoje se consome com a diferença de ser a céu aberto. “Ontem fumei um ‘caneco’ com uns amigos junto ao [bairro] do Cerco. Escondemo-nos nas escadas que lá há. Umas senhoras passaram e chamaram uns rapazes para atirar pedras a nós”, conta, num português contaminado pelo alemão de origem.
Vive há sete anos em Portugal, consome drogas fumadas e injectáveis desde 1990. Em Hamburgo, onde viveu, fazia-o numa sala de consumo assistido. “Mais higiene. Era muito bom. Ficas na tua mesa, tudo limpo e tudo bom”, recorda. Partilha o “caneco” com Inácio José, 51 anos e consumidor intermitente, encostados ambos ao muro que restou do antigo mercado que também foi café antes de ser abrigo de toxicodependentes.
Ao contrário de Marguerite, que injecta e fuma várias vezes ao dia e que se prostitui para arranjar o dinheiro necessário, José Inácio diz que só o faz de vez em quando. O aspecto limpo, o maço de tabaco inteiro no bolso do pólo verde às riscas e os sapatos sem pó no meio do entulho circundante confirmam a sua tese. “Fumo [base de cocaína] desde 1985. Nunca me injectei e por isso é que estou vivo”, apresenta-se. Trabalha na construção civil e diz que passa semanas “limpo”. “Tenho sempre um substituto em casa. Metadona não, nunca me dei bem com ela. Tenho uns comprimidos que me receitaram e que são uma maravilha. Tomo, vou reduzindo, e chego a um ponto em que já não preciso.”
Nesta segunda-feira de manhã, veio ao Aleixo “fazer uma festinha”. “Quando venho, chamo a Marguerite, também para a tirar um bocadinho desse mundo [da prostituição de rua].” Nos períodos em que trabalhou fora, nomeadamente na Alemanha, Inácio frequentou salas de consumo. “A primeira vez que vi essas salas foi em 1993, em Hamburgo. Era num contentor aquecido, ‘injectores’ para um lado e fumadores para outro. Havia mesas de metal, um balde ao lado para as pessoas cuspirem e forneciam o material todo menos a droga: seringas, pratas, ‘canecos’.”
Ao lado, relata, havia instalações para sem-abrigo. “A polícia é muito rigorosa. Não deixam que se fume na rua nem um charro. Mas são sempre muito educados e encaminham as pessoas. Até o banditismo diminuiu.”
O contraste com o Aleixo é gritante. “Na Alemanha quem maltrate um toxicodependente é punido. Somos considerados doentes. Aqui tratam-nos cem graus abaixo de cão. À Marguerite agridem-na, tiram-lhe a roupa, deixam-na abandonada.” E, olhando em volta, Inácio prossegue no mesmo tom, indignado. “Não sei porque destruíram este edifício, se não era para construir nada a seguir. Ao menos as pessoas escondiam-se para consumir. Tinham quatro paredes. É que por aí andam crianças.” E costuma ver caras novas? “Não falta chavalada nova. E a uma velocidade... Será o desemprego, a falta de trabalho”, admite. E acrescenta: “Introduzem-se uns aos outros. Mesmo com a informação que há hoje.”
“Um balde de lixívia”
Quem desça pela Calçada da Mocidade Portuguesa, espécie de esplanada para o bairro e para o descampado onde antes havia uma escola, ao lado do tal mercado e dos tanques públicos, tem uma visão panorâmica das tendas montadas pelos toxicodependentes ao longo da encosta.
Entre elas, sobressai uma bandeira portuguesa, vários papelões para abrigar do frio nocturno e muitos vultos que se movem ao som dos “capeadores” — espécie de sinaleiros que se posicionam junto a uma boca de tráfico de droga para intermediar a ligação entre quem consome e quem trafica. Rui Salvador, um ex-toxicodependente que agora colabora com a CASO, conduz o PÚBLICO pelos caminhos de onde a cidade foge no Aleixo, até junto da Torre Um — a mais directamente conotada com o tráfico. “Hoje compra-se uma dose de heroína a dois euros e meio. E uma de cocaína por cinco euros. Está muito barato. Alguém conseguiu meter muita droga aqui”, explica. Reconhece pelo nome a maior parte dos que, espalhados pelo descampado, vão consumindo a sua dose. Mas também detecta a presença de muitas caras novas.
Agora, vinda da Torre Um, passa uma mulher vestida de luto, apoiada numa bengala e a suar em bica. “Vou ‘dar um caneco’. Tem que ser agora?”, impacienta-se, quando Rui lhe trava o passo a explicar ao que vimos. “Apesar de que eu gosto de consumir sozinha, acho bem, porque ando sempre com medo”, diz sobre a hipótese de as salas de consumo poderem sair do papel. “Já me aconteceu [estar a consumir] e levar com um balde de água, ou de lixívia ou de mijo ou lá o que era. Sem pré-aviso, sem nada. Estou ali a consumir e, zás, fiquei toda encharcada, a ‘branca’ [heroína] na mão encharcada, ‘caneco’ encharcado. Se for para ali [e aponta o descampado], é o vento que nos espalha o ‘caneco’ ou são os colegas — está-se sempre de pé atrás.”
Chama-se Isabel Brito, fez 50 anos há dias. Conta que consome “p’raí há 20 anos”. São duas décadas de vaivém a arrumar carros pelas imediações do seu “bairro de adopção”. Arruma uns carros, vai ao bairro, compra a dose, consome. Volta a arrumar carros. Por estes dias, porque foi operada a uma perna, tem pernoitado na Casa de Vila Nova, um centro de acolhimento de toxicodependentes. “Lá tem enfermaria e tudo”, despacha-nos, apressada.
Além de estar a ressacar, move-a necessidade de se preparar para o funeral da irmã. Avança uns passos, depois recua para sacar de umas fotografias que leva num saco de plástico. “Se puderem pôr isto na net ou qualquer merda, para mostrar a diferença”, sugere. O contraste entre a figura de Isabel, escura, magra, envelhecida e de dentes estragados com a rapariga das fotos, morena, sorridente, de traços exóticos não podia ser maior. “Eras tu?”, pergunta Rui. “Era eu na Suíça, antes de ter começado. Tinha uns vinte e tais, fumava uns charritos e mais nada.”
Pelo corredor, onde param todos os que se vêm abastecer ao bairro, já tinha passado Matilde. Reconhece o fotógrafo por se ter cruzado com ele quando cumpria pena na cadeia de Santa Cruz do Bispo. “Ele fotografou-me em 2007, estava eu já a sair. Estive [presa] quatro anos”, situa. Magra, cabelo com a sujidade disfarçada por um rabo-de-cavalo, dentes podres. “Antes de me separar era só ‘branca’, depois é que me enterrei no pó. Enterrei é um modo de dizer, não estou enterrada, prontos, fumo. Se não tiver Subitex [medicamento utilizado na dependência de opiáceos] fico com arrepios.”
Sobre as salas de consumo: “Devia haver, porque alguns tiram as calças para baixo e tudo, quando não conseguem encontrar uma veia. E há canalha por aqui. Eu, se vir uma criança, nem fumo, porque tenho uma filha de sete anos e também não gostava que ela visse”, garante.
E acrescenta: “Eu fumo em casa, mas a minha filha nunca viu: punha-a no quarto a ver bonecos e ia para a casa de banho. Ela agora está com o pai.” À medida que Matilde se afasta, Rui Salvador explica que a maioria mente quando diz que não se injecta. “Quando os consumidores dizem que se injectam, as pessoas criam logo mais distância, recuam fisicamente.”
Rui fala sem tirar os olhos do vulto de t-shirt vermelha que cambaleia há mais de meia hora com uma seringa espetada no braço. “Há sítios onde distribuem naloxona, o que ajuda a evitar algumas overdoses”, explica, em jeito de lamento pelo facto de as associações no terreno não disporem disso ou sequer da possibilidade de, juntamente com as seringas, os preservativos, as pratas, as carteiras de ácido cítrico, distribuírem os tais “canecos” para substituir os de alumínio usados pelos toxicodependentes.
Carrinhas com chuveiros
Fora deste território de “não cidade”, desde a sua esplanada do centro do Porto, Rui Coimbra sustenta que os estudos científicos sobre a eficácia das salas “estão todos feitos”. E “em nenhuma se verificou um aumento do consumo ou da conflitualidade social”. É olhar para os relatórios do Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência, cujos responsáveis explicaram ao PÚBLICO por correio electrónico: “A evidência científica não suporta as principais preocupações levantadas sobre este tipo de salas e aponta impactos positivos em termos de aumento do acesso dos consumidores aos cuidados de saúde e assistência social e de redução do consumo de drogas no espaço público e da conflitualidade que lhe está associada.”
“Criar uma sala não é chegar a um sítio e construir um edifício”, ou seja, exige “soluções [que] têm de ser adaptadas à realidade de cada cidade, em diálogo com os moradores”. Rui Coimbra gostava de ver a urgência atendida com uma unidade móvel que percorresse os locais de consumo mais problemáticos. “Imagino uma carrinha com chuveiros e possibilidade de troca de roupa. Uma carrinha com técnicos de proximidade, serviço social, psicólogos, um enfermeiro, que pudessem chegar lá e fazer a ponte.” É que “uma carrinha pode estar a 50 metros, mas um utilizador que tenha os pés todos estragados porque injecta e já não tem veias não faz esse percurso”.
Pudesse então Rui Coimbra conduzir os decisores políticos até à beira desta estrada, nas imediações do Bairro do Cerco, onde está estacionada Florina, à espera de quem lhe requisite o corpo. Cabelo sujo e preso num rabo-de-cavalo, faces chupadas, tez amarelada — o costume. Tem vestida uma camisola com a Torre Eiffel sobre a inscrição Je ne regrette rien. Parece ironia de propósito. “Estive três anos sem consumir, deixei em 2010, mas depois voltei-me a meter, em 2014. Porquê? Devido aos ambientes, às companhias...”
Manteve-se “limpa” num período de curta emigração para a Arábia Saudita. Recaiu quando se separou do pai das suas filhas, uma de nove anos e outra de dois, ambas entregues aos avós. “Esvaziei-me outra vez nisto. Isto não é desculpa, mas pronto. Foi o que foi.”
Vem de Valongo para consumir. Põe-se na beira da estrada, entra num carro, faz sexo, recolhe o dinheiro, vai ao Cerco comprar uma dose, consome-a na tal casa em ruínas. “Se tiver 50 [euros] vai 50, se tiver 100 vai 100. Mas à noite ninguém vai para a casa velha. É muito escuro. Junta-se tudo ali nas escadas.” E aponta as tais escadas onde Marguerite diz ter sido apedrejada há dias.
Quando consegue, Florina vai dormir a casa dos pais para ver as filhas. A maior parte das noites dorme no bairro, numa cama alugada a quatro euros e meio a noite. E se tivesse uma sala onde pudesse consumir abrigada? “Seria muito melhor. Ao menos ninguém me via.”
Caminha-se em direcção à ruína de uma casa de pedra, espécie de sala de consumo não assistido, onde está Carolina. Lá dentro (é uma forma de dizer porque a casa já quase não tem tecto), alguns afastam-se perante a invasão. Carolina não. Olhos azuis. Seriam bonitos, se não estivessem vazios de qualquer expressão. Parece saber que o seu aspecto pode ajudar a dissuadir novos consumidores. Daí deixar-se fotografar com um “caneco” entre os dedos, cheios de feridas calejadas de tão antigas. “Quando me dizem: ‘Eu ando há seis meses nisto’, digo-lhe logo ‘Como?! Tu deves ser mas é burro.’ Isto pode ser bom, mas não dá. Como é que hei-de dizer? Não compensa. Toda a gente vê o que isto faz. Por muito bom que seja, leva à miséria, à desgraça.”
Com 48 anos a parecerem muitos mais, Carolina começou a consumir aos 14. Tem várias desintoxicações na sua biografia. Recaiu sempre. “Prostituir, roubar, fiz tudo. Quem diz que não faz mente. Faz e acontece. Eu entro em pânico. Só de saber que não tenho dinheiro para a droga fico com falta de ar. Não tenho forças para andar, não tenho nada”, diz, a meio da conversa. Valeu-lhe muitas vezes a mãe, que chegou a ir comprar-lhe algumas doses e que lhe criou os filhos. “Toda a toxicodependente que diz que consegue criar os filhos e andar na droga está a mentir. Uma drogada põe sempre a droga em primeiro lugar. Eu, graças a Deus, tenho uns filhos que nem os mereço. Não têm vícios nenhuns. Mas não é graças a mim.” Carolina mora no Lagarteiro, à custa da reforma da mãe, que está acamada. O seu corpo já não dará para a prostituição. Garante que se tivesse uma sala onde consumir noutras condições não hesitava. “Estava-se mais à vontade, em todos os aspectos.”
O homem que ao lado prepara o “chuto”, mas que se recusara falar com os jornalistas atira-se à conversa: “Se fosse para deixar de andar aqui no meio do lixo, era bom. Muitos fazem as necessidades no mesmo sítio onde consomem. E às vezes onde comem. É uma badalhoquice.”
É mas é, na cabeça de Rui Coimbra, uma “terceiro-mundice”. Ei-lo, retomando o jorro da sua indignação: “Vamos todos pagar muito mais. Portanto, nem que seja por este argumento mais economicista — e já nem falo do respeito pelos direitos humanos —, deixar passar mais um dia acarreta mais despesas. E depois, se não se ignoram outras situações de doença, se a lei diz desde 2001 que o consumo de substâncias deixou de ser crime para passar a ser doença, porque é que havemos de ignorar o consumo de substâncias?!”, questiona. E concluiu: “Está mais do que na altura de deixarmos para trás a demonização das substâncias e de quem as usa.”