A automatização da insensibilidade

Começamos a perder a capacidade de identificação intelectual e afetiva com os outros e esse é o momento em que deixamos de ser solidários, altruístas e moralmente responsáveis

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Sobre os recentes casos de divulgação de vídeos com conteúdo pornográfico, filmados durante as festividades académicas, deveria haver mais a aprender e menos a vulgarizar. A necessidade de espetacularização do ato foi superior às consequências do ato em si. Começamos a perder a capacidade de identificação intelectual e afetiva com os outros e esse é o momento em que deixamos de ser solidários, altruístas e moralmente responsáveis. As câmaras ligam-se e o raciocínio desvanece. Desapareceu a linha entre o inadequado e o abuso e nenhum dos presentes tomou consciência dos atos. O vampirismo vomitório que orienta a construção da identidade do ser é, hoje, resultado de uma egolatria global sem precedentes. A esquizofrenia coletiva e mediática que carateriza a atualidade é o farol para uma autopatia consentida e alimentada por todas as partes.

A leviandade com a qual se olhou para estes acontecimentos é de um egocentrismo supremo, de uma inacreditável automatização da insensibilidade. A falta de questionamento, de cuidado e a inexistente empatia demonstrados são sinónimo da desumanização que afeta uma parte – demasiado - grande da sociedade. A perda da capacidade de reflexão e de reação são lamentáveis. O à vontade com que as câmaras se ligam para documentar um momento anormal, obsceno e danoso é indecente. Porque é que não ficam surpreendidos? A vida de alguém muda em poucos minutos, mas o olhar está turvo pelo ecrã que têm entre eles e a realidade. Só conseguem olhar com escárnio e superioridade para o que os rodeia.

A leniência com que observamos o desenrolar destes acontecimentos faz de nós seres moralmente amorfos. Para os presentes, que assistiram com indescritível inércia e reagiram com profundo primitivismo ao sucedido, o mais importante foi registar o conteúdo polémico para divulgar nas redes sociais. Conteúdo que vai deixar bocas abertas, que indigna e remexe com alicerces. Mas que, no final de contas, confere protagonismo e visibilidade. E eles, filhos da sociedade do espetáculo, são levados a documentar. Porque documentar não é crime, é apenas olhar com indiferença para estes comportamentos e porque o sensacionalismo assim o obriga. Gritaram, aplaudiram, uivaram e espernearam mas não perpetraram nenhum crime, pobres coitados. Vítimas da teatralidade que impera são engolidos pela intensa necessidade de renovação de estórias. A culpa não é deles, é de quem faz e se deixa ser apanhado a fazer. É uma pena, pensassem nisso antes, pensam eles.

Igualmente grave são os canais de comunicação que fazem questão de usar uma capa de justiceiro aos ombros, como se de super-heróis se tratassem. Tirar conclusões para lançar tabloides é tão errado quanto partilhar tais conteúdos para conquistar pelo choque. A democratização da suposição é tão perigosa quanto a ignorância. Mais uma vez, a forma está acima do conteúdo e interessa mais agitar do que refletir. Suposições que se formam com o intuito de gerar protagonismo e notoriedade são ameaças declaradas à intelectualidade, desenvolvimento e racionalidade do público em geral e em particular. É por isso que já não acreditamos em super-heróis.

Chegamos ao momento em que secundarizámos, sempre, o que acontece face ao que parece acontecer. Mesmo que seja um abuso sexual, um atentado ao pudor, ou irreverência alcoólica. A margem que existe para dúvida deveria ser suficiente para inibir, suscitar a reflexão, expressar a não-aceitação. Consensual ou não da parte dos protagonistas, o que aconteceu foi um abuso moral, ético e sexual da parte dos espetadores. Foi um abuso a forma como ninguém questionou os limites que estavam a ser ultrapassados. Ninguém colocou em causa a consensualidade e o estado mental e físico dos intervenientes. Ninguém achou que em vez de filmar deveriam intervir, chamar à razão, perceber. Ninguém pensou que o álcool não é desculpa. Ninguém pensou. Ligaram as câmaras e filmaram.

Pensam que são invencíveis, imortais e inesquecíveis, e se fosse ao contrário acontecia o mesmo. Mas todos pensam que estão acima da desmoralização e humilhação públicas, porque não fariam o mesmo e se fizessem não ficaria gravado! A sagacidade de saber fazer o mal sem ser testemunhado. Olham apenas para o umbigo e para a câmara e isso arruinará os pilares que foram erguidos até hoje. Pensam para com eles que o mundo é mau para os outros, não para eles, com uma condescendência desdenhosa e indiferente. É uma pena, pensassem nisso antes, pensam eles. Ou não pensam. E esse será o nosso caminho para a ruína.

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