Há já um mês que abrimos em Campanhã o segundo gabinete do Habitar no Porto. Apesar de a equipa se ter alargado, ainda mantenho o hábito de estar presente em parte dos atendimentos. Hoje em dia a especialização é tão grande e os requisitos burocráticos tão elevados que é importantíssimo manter o contacto directo com os inquilinos e proprietários. Caso contrário, corremos o risco de nos esquecermos para quê e para quem estamos a trabalhar.
Esta semana foi especial porque reuni novamente com a Maria João, uma bonfinense que conheço há um ano, e que anda já há cerca de 10 às voltas com uma casa de que é proprietária. A situação está a ter um grande impacto nela. Parte da família quer vender, porque os processos de reabilitação, tão profissionalizados, tornaram-se causa de desassossego. Mas, ao mesmo tempo, a venda do edifício é a venda “da casa da mãe”, e isso tornou-se fonte de ansiedade.
É triste verificar como algo que poderia ser motivo de felicidade acabou por se tornar um terreno propício para tristeza. A construção de uma casa deveria ser um processo apaixonante, cheio de decisões pessoais que dizem respeito à nossa intimidade e, portanto, implica a possibilidade de nos afirmarmos no mundo com voz própria. No entanto, a experiência mostra-nos o contrário, o processo acaba por se tornar o preço que temos de pagar pelo objectivo de ter um lugar onde habitar.
O pior é que ficámos tão habituados que já nem pensamos que as coisas podem ser de outra maneira. E, com isto, inferiorizamos a capacidade transformadora da imaginação. No seu conhecido livro “O mundo de Sofia”, Jostein Gaarder afirma que os filósofos são como crianças que ainda não se habituaram ao mundo e que, por isso, ainda não perderam a capacidade de se surpreender. Se a nossa infância nos parece mais feliz não é só porque tivemos menos problemas, mas também porque na nossa vida pesava mais a criatividade.
Há uma certa verdade nisto. Quando era miúdo, havia um jardim perto da minha casa. Tinha balizas, redes e tudo o que precisávamos. E no entanto onde realmente gostávamos de nos juntar era num lote devoluto, dentro da própria escola. Bastava colocar duas pedras em cada extremo do terreno e formar duas equipas para tornar possível o futebol. Nem sequer o facto de não ter postes e traves nos impedia de afirmar, por vezes com sucesso, que a bola tinha entrado no ângulo.
O mesmo acontecia durante as férias de Verão, na aldeia dos meus avós. Lá, o Enrique, um dos moradores mais velhos, deixava-nos participar do seu campeonato do mundo fictício, atribuindo-nos, a cada dia, equipas inverosímeis que passavam às diversas fases com base em resultados inventados. Neste contexto, marcar um golo não era nada comparado com a perspectiva de disputar um Real Madrid – República Popular da China e assistir à posterior e delirante entrega de prémios.
Da mesma maneira que quando éramos miúdos o futebol era o veículo para a imaginação (e não simplesmente um conjunto de regras a serem seguidas à risca), a habitação deveria passar a ser o veículo para a alegria. Uma alegria capaz de contaminar não só os espaços (como já ouvi dizer o Siza) como todos os intervenientes no processo da sua construção. Aqui, a legislação e as instituições têm um papel fulcral no sentido de incentivar práticas capazes de construir cidades dignas de serem vividas.
Uma das melhores coisas que podia acontecer à habitação seria que o processo criativo se alargasse ao interior das instituições, onde de certeza não falta talento, embora às vezes não encontre maneira de se fazer ouvir. Deixem de procurar a inovação no estirador: o verdadeiro génio criativo está na capacidade de estabelecer uma continuidade entre legislação, burocracia e práticas técnicas que seja tão natural como a vida quotidiana a que devem servir.